segunda-feira, maio 02, 2005

Um pouco de ficção



Na falta de novidades, eis um pequeno conto escrito lá atrás, no já longínquo ano de 2004.



JEREMIAS

Jeremias escutava a canção do Chico e tinha devaneios. Pensava que ela poderia ter sido feita para ele, o pretensioso, considerando alguns pequenos ajustes, é claro. Olhe que Jeremias não era nada dado a vaidades, como já veremos adiante, muito menos costumava ter fantasias tão megalomaníacas.

O sujeito era simplório, isso logo se via. Parecia procurar esconder seu rosto entre os ombros, enterrando a cabeça no corpo franzino, coisa que já havia lhe gerado problemas na rua – alguns meninos um dia lhe chamaram de corcunda e ele foi obrigado a conter seus ímpetos. Depois de mais alguns olhares, percebia-se que não era propriamente feio. Poucos, porém, dispunham-se a investir todo esse tempo. E se pode dizer isso sem nenhuma pena, pois Jeremias fazia muito pouco para mudar essa situação. É como se gostasse que, numa contagem exageradamente otimista, digamos umas dez pessoas fossem capazes de lembrar seu nome sem titubear, deixando de fora deste número, logicamente, aqueles que baixavam os olhos para ler as letras pequenas do seu crachá.

Nada disso impedia que Jeremias ouvisse a canção do Chico e pensasse que ela tinha sido feita para ele. Ao contrário do que se pode imaginar, porém, essa idéia não tinha se criado assim, de uma hora para outra. Levara tempo e esforço. Para se transformar em conclusão, a mera suspeita de Jeremias dera tantas voltas pelos caminhos embaralhados do seu raciocínio que valeria pouco a pena procurar perseguir essa trilha, muito menos tentar descrevê-la.

Naquele momento, se alguém gastasse algum tempo mirando seu rosto perceberia logo que suas divagações não lhe eram nada prazerosas, muito menos espontâneas. Podia notar-se que seus pensamentos iam longe, que olhava a janela do micro-ônibus com olhos perdidos, mas era como se ele fizesse um imenso esforço para alcançar pensamentos tão pouco práticos e tão vagamente desenhados. Sem galhofa, se olhássemos para Jeremias sentado no primeiro banco da fila da direita, com os olhos fixos na transparência do pára-brisa, só poderíamos concluir uma coisa – o sujeito fazia ali um esforço do cão para se perder em pensamentos. Seus olhos apertados, sua testa enrugada, seus ombros tensos, tudo dizia que, mesmo sonhando alto, ele quase sofria.

Como a maioria das coisas da vida, todo esse sofrimento poderia ter sido evitado, não fosse uma ação alheia jogar o seu destino por aquele caminho. Jeremias poderia estar fazendo o que costuma, e gosta, fazer todo dia – tirar uma boa soneca antes de chegar ao escritório. Poderia não ter caido naqueles devaneios tão sofridos, poderia não estar metido em tanto esforço, poderia não investir na inutilidade uma energia que depois poderia lhe fazer falta. Afinal eram ainda sete horas da manhã. Poderia isso, poderia aquilo, mas sabe-se bem que a vida não é feita do que poderia. Jeremias poderia uma série de coisas, mas o imprudente motorista do micro-ônibus lhe fez o favor de mudar a estação do rádio, o que logo depois lhe colocou nos ouvidos a canção do Chico.

Já vimos que Jeremias não era vaidoso. Seu devaneio, enveredado pelos tais caminhos embaralhados da sua mente, lhe levara a concluir que a música havia sido feita para ele, e não sobre ele. Sua vida não encheria quatro estrofes, pensou com a inesperada coerência e a tipica modéstia de um Jeremias lúcido e corriqueiro. Descrevê-lo, com fidelidade, não exigiria mais que três versos. Era um sujeito simplório, como já dissemos.

A canção nunca poderia ter sido escrita sobre ele, ou ter sido inspirada nele, portanto. Sinceramente, isso pouco importa. O fato inóspito era que a música havia capturado a atenção de Jeremias tão impiedosamente, havia lhe retesado os músculos de forma tão aparente e lhe jogado num mundo de idéias doloridas nunca experimentadas, que Jeremias só podia ter a certeza que aquela música existia para ele. O devaneio pouco ligava se Chico conhecia Jeremias ou não, mas era óbvio que o compositor queria muito lhe dizer alguma coisa. E Jeremias escutava como nunca. Depois, mergulhou para dentro de si.

Jeremias percebeu que, todo dia, ele fazia tudo sempre igual. Mas ao mesmo tempo notou que não tinha ninguém para sacudi-lo às seis horas da manhã. Teve então um pensamento infame, e pensou que o único que lhe era fiel no despertar era seu rádio-relógio, último modelo. Ou que havia, sim, quem lhe sacudisse, mas este era só seu chefe, e não exatamente às seis horas da manhã, mas um pouco mais tarde. Tudo arriscou descambar para uma piada sem graça dentro dos caminhos embaralhados da mente de Jeremias, mas a música continuou e ele logo percebeu que aquilo não tinha a menor graça. E que estava, a seu modo, irremediavelmente preso àquele enredo.

Duro para Jeremias foi perceber que ficaria muito feliz se seu cotidiano fosse apenas monótono, pois ele até não gostava tanto de surpresas, mas que além de monótono, não havia nada nem ninguém que valesse mesmo a pena dentro da sua rotina. Sua testa se franziu ainda mais quando ele desejou com uma força que nunca pensou antes que pudesse desejar ter alguém com quem pudesse dividir o seu dia-a-dia medíocre, e pensou então na felicidade extrema de um beijo pontual. Talvez não pudesse ter alguém, e aí se contentaria se simplesmente tivesse algo que colorisse a sua rotina, algum interesse que lhe fugisse à obrigação. Mas não tinha.

Faz-se necessário dizer que, naquele dia, Jeremias não chegou ao escritório. Mandaram falar que era por motivo de força maior. Algumas pessoas que haviam estado com ele naqueles momentos chegaram a dizer que Jeremias, ao descer no ponto de ônibus usual, paralisou-se junto ao meio-fio. Ficou ali em pé, completamente estático, por vários minutos. A figura do homem não deve ter agradado muito aos passantes, pois vieram retirá-lo logo depois. Nunca mais se ouviu notícia dele, mas também não se pode dizer que isso tenha feito muita diferença.

2 comentários:

Anônimo disse...

adorei!

André Alvarez disse...

:-)

Cazita, ainda não tinha postado este não. É do tempo "sem-blogue".