A noite da última
terça-feira foi muito bonita para aqueles que admiram o Presidente Obama por
seu temperamento, sua inteligência, sua calma, sua decência e também por sua
recusa, diante da óbvia e intensa pressão de suas filhas, em comprar um segundo
cachorro. (E vamos admitir isso de uma vez por todas: é uma delícia ter um cachorro - mas um só é o suficiente). A noite de terça serviu também para sacramentar
o Fenômeno Obama. Por uma concreta, ainda que pequena, margem - ou seja, como uma
necessidade do destino, mais do que uma mera contingência política.
Ainda se trata de uma das
mais fantásticas trajetórias na história da América: um rapaz negro de Chicago,
com um estranho nome africano e sem nenhum grande feito no currículo além de um
brilhante discurso em 2004 e um bonito e introspectivo livro de memórias
autobiográficas, se torna o mais importante personagem do ainda todo-poderoso Império
Americano. Nada de tão improvável aconteceu numa democracia, ou
semi-democracia, desde os tempos de Disraeli.
E, uma vez mais, nos
espantamos diante da capacidade dos adversários de Obama de odiá-lo com tanta
paixão. Um homem que até mesmo suas filhas adolescentes devem ter dificuldade
de contrariar, um homem que nunca demonstra raiva, que sempre busca a
conciliação, mesmo sob risco de prejuízo próprio, e que dificilmente disse algo
rude, mal-intencionado ou destemperado durante toda sua vida pública.
No entanto, basta assisti-lo
subir até o palco e tomar seu lugar no púlpito para entender algumas das razões
de tanto ódio. Obama é, acima de tudo, calmo, tranqüilo – é auto-suficiente, e
essa auto-suficiência, essa tranqüilidade explícita, que é vista, até mesmo por
seus admiradores, como um certo distanciamento, uma ironia perante sua própria
eloquência, deve transmitir aos seus detratores um desapego e arrogância
insuportáveis. John Kennedy, que tinha a mesma característica do distanciamento,
foi muitas vezes acusado, com bastante justiça, de ser ensimesmado e
indiferente aos outros. Não se sentia obrigado a agradar ninguém. Mas, ainda
assim, odiá-lo? De que forma exatamente? Por que, precisamente? (Republicanos,
que já tiveram a oportunidade de assistir à impotência e indignidade dos
Democratas odiando Reagan, o seu próprio “sujeito auto-suficiente”, já deveriam
saber lidar com isso). Mas é inevitável. Todo mundo admira o cara que ganha
tudo e mal derrama uma gota de suor – menos aqueles que estão disputando a
corrida ao seu lado, que preferiam, pelo menos, que aquele cara parecesse ter
se esforçado um pouco. Um homem que é tão auto-suficiente, disse o filósofo,
nem sempre reconhece as carências dos outros. (Alguém duvida que Bill Clinton
adoraria ser mencionado no discurso da vitória do Presidente? Ele não obteve
essa honra mas, sendo um homem com muito mais sensibilidade, certamente ele
teria citado Obama, se os papéis da noite estivessem trocados).
O fato realmente estranho
no pronunciamento da vitória foi que Obama retornou, com paixão e sinceridade
evidentes, aos temas daquele primeiro e belo discurso das prévias Democratas em
2004: a unidade nacional; somos menos divididos do que nossa política parece
sugerir; não existem “Estados Republicanos” ou “Estados Democratas”. “Não,
não!” parecem querer intervir alguns de seus admiradores: “Preste atenção ao
que aconteceu durante os últimos quatro anos, Sr. Presidente! Somos definitivamente
tão divididos quanto sugerem nossas disputas políticas. É, na verdade, por essa
razão que nossa política é assim.”
Persistir acreditando em
algo já tantas vezes refutado pela realidade é parte do dom de Obama. Apesar de
seu mandato ter sido bem sucedido – a reforma do Sistema de Saúde, políticas
econômicas racionais, Juízes da Suprema Corte lúcidos, fim da tortura, e todo o
resto – o seu projeto político mais específico foi, de diversas formas, um fracasso.
No começo de seu primeiro mandato, Obama claramente pensava que suas tão evidentes
qualidades, sua boa vontade, sua inteligência e vontade de conciliação –
qualidades que ele também julgava como evidentes, já que a modéstia, assim como
a carência, também não faz parte das armas do “sujeito auto-suficiente” – tudo
isso faria com que o pessoal da direita, pelo menos os mais racionais, viessem para
o seu lado, assim como afastaria os mais radicais de ambos os partidos. Mas isso
não aconteceu. Nem perto disso. Assim, é fácil perceber por que alguns de seus
apoiadores (Chirs Matthews, por exemplo) ficaram, apesar de toda a euforia da 2ª
vitória, um tanto exasperados – não vamos repetir isso tudo de novo, vamos?
A verdade, no entanto, é
que existem razões claras que explicam por que Obama é um fenômeno e uma delas
é possuir uma inteligência política tão afiada que o permite perceber rapidamente
quando uma ilusão lhe é útil. Inteligência política é um dom tão distinto e
intuitivo quanto qualquer outro tipo de inteligência – a inteligência motora de
um atleta, ou a inteligência analítica de um intelectual – e um grande
componente da inteligência política reside na fidelidade que o líder demonstra às
suas próprias ficções. O novo filme de Spielberg, “Lincoln”, nos lembra (ou nos
fará lembrar, quando for lançado mais amplamente), que toda a conduta de
Lincoln no seu mandato durante a guerra civil se baseava na ficção de que a
secessão, a divisão “Norte-Sul” dos EUA, nunca havia de fato ocorrido – que o
Sul não era uma nação rebelde, mas apenas um bando de foras-da-lei se
organizando em gangues e fazendo arruaças. O que era fácil constatar que
acabava de ter acontecido – um grupo de estados se tornando uma nação em
separado – simplesmente não tinha acontecido. Essa ilusão de continuidade, de
união indissolúvel mesmo diante de sua evidente dissolução, era essencial à
causa de Lincoln e às suas próprias crenças.
À lista de – como poderíamos
chamá-los? – nobres mentirosos (um tanto duro, mas creio que transmite algo do
conceito) deveríamos adicionar muitos outros grandes políticos. Franklin D. Roosevelt,
com sua afirmação de que o medo era tudo que tínhamos a temer, quando havia
muita coisa bem real a ser temida; Reagan, da mesma forma, repetindo sempre
seus mitos e mantras. Por hora, Obama precisa conhecer as vantagens de se brigar
e os limites de se invocar a união. Mas ele sabe, da mesma forma, que um “sujeito
auto-suficiente” não pode deixar de cultivar cuidadosamente o seu discurso mais
querido, sob o risco de torná-lo vazio e irrelevante. Se toda esta habilidade
pode fazê-lo ser visto às vezes como ingênuo, ou até mesmo como manipulador,
bem, afinal, é ele quem é o fenômeno e não você. E foi ele quem bateu o pé e
não cedeu ao segundo cachorro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário