Já foi muitíssimo mais difícil descobrir os autores que valem a pena. Até completar vinte anos, minhas fontes de referências literárias eram poucas: a estante de livros da minha mãe, algumas citações esparsas encontradas em quadrinhos e revistas de música (de rock, na verdade), e o “Caderno 2”, do Estadão. O colégio e a faculdade não ofereceram muito mais que Machado de Assis e alguns gurus da Administração de Empresas. Interesse e curiosidade sempre ajudaram, mas fora do campo da Música (o habitat natural da turba adolescente) não era nada fácil encontrar por si próprio os caminhos culturais que valiam a pena.
Se não fosse por minha mãe e por Paulo Francis, portanto, dificilmente me encontraria com George Orwell, Aldous Huxley ou Albert Camus (autores clássicos e requisitos básicos de qualquer formação, mas como eu iria saber?). E isso é o cânone. Mais difícil ainda era obter informação sobre novos e bons autores contemporâneos.
Toda essa introdução apenas para agradecer a existência da Internet. Afinal, foi através da Internet, e não da biblioteca da minha mãe (uma hora ela se esgota) e muito menos através dos cadernos culturais dos grandes jornais (uma hora eles deixam de fazer sentido) que pude chegar aos textos de David Foster Wallace.
Nos últimos vinte anos, a literatura viu surgir uma nova geração de autores extremamente talentosos. A virada de século foi prolífica tanto nos EUA (Jonathan Franzen, Michael Chabon) e Grã-Bretanha (Zadie Smith, David Mitchell, Jonathan Coe), como também na literatura de língua espanhola (sobretudo o chileno Roberto Bolaño). Apesar de vários desses autores terem sido publicados no Brasil, a repercussão dessa efervescência cultural perdeu aqui as vitrines da mídia tradicional, ficando restrita ao público iniciado ou interessado. Referências a toda essa turma de autores, somente espalhadas pela Internet, em sites, blogs e fóruns dedicados à literatura.
David Foster Wallace é talvez o mais talentoso, virtuoso e errático autor dessa geração. Já tinha publicado seu romance de estreia em 1987 (“The Broom of The System”) e um livro de contos (“Girl With a Curious Hair”, 1989) quando se consagrou definitivamente em 1996 ao lançar sua obra ícone, “Infinite Jest”. O romance é um catatau de 1.100 páginas que definiu claramente o estilo e o potencial do autor junto à crítica e seu público – uma prosa complexa, com descrições hiper-detalhistas, digressões extensas sobre incontáveis temas, repleta de insights fascinantes, sensibilidade e empatia fora do comum. Na esteira do sucesso, uma coletânea de contos, “Breves Entrevistas com Homens Hediondos”, foi publicada em 1999 também com boa repercussão (traduzida e publicada posteriormente no Brasil, em 2005, pela Companhia das Letras). Outra coletânea de contos, “Oblivion”, sairia nos EUA em 2004.
Wallace nasceu em Ithaca, no Estado de Nova York, em 1962. Escritor e professor de Literatura, estava portanto na casa dos 30 anos quando foi atingido pela repercussão de “Infinite Jest”. Sofrendo de depressão crônica desde a adolescência, Wallace viria a cometer suicídio dez anos depois, em 2008, aos 46 anos. Como costuma acontecer, a tragédia exponenciou a divulgação de seu nome na mídia. Da mesma forma, como também aconteceu com o chileno Roberto Bolaño (falecido em 2003), sua morte prematura aumentou ainda mais o culto ao redor de seu nome. Em 2011, com algum alarde da crítica, se deu a publicação póstuma de seu último e inacabado romance, “The Pale King”.
Além dos romances e contos, sua produção de não-ficção sempre foi também muito consistente. Por toda sua carreira, Wallace publicou artigos em revistas e jornais (Harper´s, New York Times) oferecendo o que ele próprio descrevia como um testemunho extra-jornalistico dos acontecimentos.
Seus ensaios são uma excelente porta de entrada para aqueles que querem conhecer sua obra. Deixam de lado a complexidade estrutural e o experimentalismo dos textos de ficção, mas mantém as mesmas qualidades que caracterizam o autor: sua inteligência e virtuosismo para quebrar a realidade nas mais ínfimas partículas, digressões filosóficas sobre os temas mais mundanos e um festival sensorial de detalhes descritivos. Ler seus textos é estar constantemente exposto à sensação de comungar com ele alguma reflexão ou impressão, mesmo sem nunca haver pensado ou sentido nada sequer parecido antes. Após páginas de descrições bem-humoradas sobre pessoas, locais e situações, Wallace parece sempre tirar da cartola alguma conclusão que é, ao mesmo tempo, inevitável e surpreendente, familiar e inovadora, empática, mas totalmente inédita.
Esses textos de não-ficção já foram reunidos em algumas compilações publicadas nos EUA (“A Supposedly Fun Thing I´ll Never Do Again”, 1997; “Consider The Lobster”, 2005) e alguns já haviam sido traduzidos para o português, mas publicados apenas parcialmente (trechos na Revista Piauí e também no blog Todoprosa, de Sérgio Rodrigues). De resto, aos brasileiros que se interessavam por mais coisas do autor, restava até agora garimpar a Internet à procura de seus artigos. Até agora, pelo menos.
“Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo” (Cia das Letras, 304 páginas) é finalmente a louvável iniciativa de compilar o melhor da produção de não-ficção deste grande autor e finalmente apresentá-la no Brasil a um público mais amplo. O livro foi lançado sobretudo pela iniciativa dos escritores Daniel Galera e Daniel Pellizzari, entusiastas do autor e tradutores dos textos para o português. Além de um interessante prefácio escrito por Galera, a coletânea traz cinco ensaios publicados em jornais e revistas americanos entre 1994 e 2006, além de um discurso de paraninfo proferido numa formatura de faculdade.
“Isto é Água”, o tal discurso de paraninfo, é o texto mais abstrato do livro. Conceitual e metafísico, seu recado aos alunos formandos começa com uma parábola, parte para exemplos prosaicos da vida cotidiana e termina por explicitar um tipo de “credo” do autor, um conjunto de crenças e valores que ele imagina necessários para suportar os fardos da existência. Simplicidade e profundidade, mais uma das antíteses comuns em Wallace.
Outros três ensaios são exemplos clássicos de New Journalism, o tal jornalismo literário narrado em primeira pessoa, mas com a inconfundível voz “não-jornalística” do autor. Tratam-se, na prática, de artigos escritos sobre eventos turísticos onde, como descreve o autor, a pauta que lhe foi dada era algo tão objetivo como “vá até lá, gire 360 graus e nos conte o que você viu”. No final, o resultado são testemunhos incríveis, divertidos e únicos, revelando tanto a essência dos eventos em si como também transformando o próprio autor num personagem cativante. “Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo”, o texto que dá nome ao livro, é o relato sobre uma visita à Feira Rural de Illinois, um curioso embate entre a visão de um urbanóide cidadão do Leste civilizado versus o agrícola Meio-Oeste Americano. “Uma Coisa Supostamente Divertida que Eu Nunca Mais Vou Fazer” conta a semana desfrutada por Wallace dentro de um super-navio de cruzeiro no Caribe. O título do ensaio resume seu espírito. Finalmente “Pense na Lagosta” é um misto de reportagem sobre o Festival da Lagosta do Maine e ensaio filosófico-existencial sobre o fato de cozinharmos lagostas vivas apenas para satisfazer nosso paladar. Publicado numa revista de gastronomia, talvez o artigo tenha surpreendido os leitores-gourmets.
Temos ainda “Alguns Comentários sobre a Graça de Kafka dos Quais Provavelmente Não se Omitiu o Bastante”, palestra com uma perspectiva inusitada sobre o autor tcheco e, finalmente, “Federer como Experiência Religiosa”, texto fantástico sobre a experiência de testemunhar um super-humano no torneio de Wimbledon 2006 e um dos melhores artigos da coletânea (pelo menos para quem gosta de jogar ou assistir tênis).
Replico então aqui, como retribuição até, o presente magnífico que obtive da Internet: recomendo muitíssimo conhecer a prosa de David Foster Wallace. Pelo menos agora, a publicação de “Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo”, deixa mais física e evidente a presença dele entre nós. Para breve, a Companhia das Letras também promete o lançamento no Brasil de “Infinite Jest”, atualmente sendo traduzido por Caetano Galindo. Espero ansiosamente e já sei que vai valer a pena.
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