quinta-feira, outubro 13, 2005

E no melhor futebol do mundo



Na televisão aqui ao lado, assisto a bagunça generalizada no jogo entre Santos e Corinthians. O campeonato brasileiro hoje oferece a perfeita analogia de um Estado desmoralizado. Como diria o cientista político, a autoridade perdeu sua legitimidade. Basta uma arbitragem medíocre, cheia de lambanças, para que a mera incompetência passe a ser interpretada como ladroagem, injustiça, resultado comprado. Daí são dois passos: jogadores revoltados, torcida invadindo o campo, polícia descordenada, jogo interrompido. Tudo isso num jogo remarcado em razão de crimes anteriores. E todos reclamam, cada um puxando sardinha para o seu lado, sem nenhuma coerência ou equilíbrio. Vem mais bagunça por aí – estádio interditado, mais gritaria. Vou ficar surpreso se este campeonato chegar ao final.

terça-feira, outubro 11, 2005

Traindo Evelyn Waugh



It seems to me that a prig is someone who judges people by his own, rather than by their, standards; criticism only becomes useful when it can show people where their own principles are in conflict.


A frase acima foi pinçada de um dos últimos pocket-books de 7 reais da Penguim que comprei, The Coronation of Haile Selassie, de Evelyn Waugh. É um pequeno ensaio sobre a coroação do último Imperador da Etiópia, em 1937, testemunhada in-loco pelo escritor inglês. Minha primeira leitura dele e eu, que esperava algo muito mais satírico, fui surpreendido por um equilíbio elegante entre fidelidade jornalística, ironia aristocrática e sensibilidade sincera.

Essa frase, no entanto, nao tem nada a ver com a Etiopia. Faz parte de um trecho do ensaio onde Waugh faz uma pausa na narrativa de viagem e parte para algumas divagações sobre o jornalismo. Esse trecho é tão interessante que me deu vontade de traduzí-lo. Para praticar um pouco, afinal. Tradução é algo que me interessa. Quem sabe, uma atividade futura, pós virada de mesa. E captar a elegância do texto do Waugh me pareceu um desafio interessante para um exercício amador. Pretensioso, vá lá, mas não me importo em fracassar.

Particularmente, foi essa tal frase, a mesma me capturou especialmente, a que mais me ofereceu dificuldade. No final, a traduzi assim:

Parece-me que ser pedante é ser alguém que julga os outros, ao invés de com os critérios destes, com os seus próprios; a crítica só se torna útil quando se pode demonstrar às pessoas que seus próprios princípios estão em conflito.

Não gostei. E aceito sugestões.

Enfim, vou colocar o trecho todo aí embaixo. Vale a pena ler, apesar da tradução.

Foi muito interessante para mim, quando os jornais começaram a chegar da Europa e da América, comparar minhas próprias experiências com aquelas dos diferentes correspondentes. Eu tinha a sorte de trabalhar para um jornal que valorizava a acuidade dos fatos antes de qualquer outra coisa; mesmo assim fui traído por alguns erros. À economia telegráfica pode-se creditar alguns deles, como quando “Abuna”, o título do primado da Abissínia, acabou expandido por um zeloso sub-editor para “Arcebispo de Abuna”. Nomes próprios frequentemente acabam sendo de alguma forma corrompidos e transposições curiosas de frases inteiras ocasionalmente acontecem, de modo que em algum lugar entre Addis Ababa e Londres fui pego pela surpreendente afirmação de que George Herui havia servido na equipe de Sir John Maffey no Sudão. Erros deste tipo parecem inevitáveis. Minha surpresa, ao ler as reportagens sobre a coroação não foi a de que meus mais impetuosos colegas tenham se permitido desconsiderar alguns detalhes ou ainda que tenham caído em algum exagero ocasional sobre os aspectos mais românticos e incogruentes do acontecimento. Pareceu-me, na verdade, que havíamos sido testemunhas de uma série bastante diferente de eventos. “Trazer primeiro as notícias” e “dar ao público o que ele quer”, os dois princípios dominantes da Fleet Street, nem sempre são conciliáveis.

Não pretendo fazer com isso nenhuma condenação convencional à “imprensa marrom”. Parece-me que ser pedante é ser alguém que julga os outros, ao invés de com os critérios destes, com os seus próprios; a crítica só se torna útil quando se pode demonstrar às pessoas que seus próprios princípios estão em conflito. É perfeitamente natural a um jornal barato procurar entreter ao invés de instruir, e dar prioridade ao que é surpreendente e frívolo sobre o que é importante mas tedioso ou inintelegível. “Se um cachorro morder um homem, isso não é nada; se um homem morder um cachorro, isso é notícia.” Minha reclamação é que na luta pela precedência a imprensa barata está abandonando os próprios critérios de serviço ao público que ela mesmo estabeleceu para si própria. Quase todo jornal de Londres, hoje, prefere uma matéria incompleta, inacurada e insignificante sobre um evento, desde que ela possa ser publicada mais cedo que seus concorrentes. Mas o público não está preocupado com essa competição. O leitor, abrindo seu jornal durante o café-da-manhã, não tem nenhum interesse vital sobre, por exemplo, a situação da Abissínia. Um acidente de avião ou uma luta de boxe podem ser casos diferentes. Nestes casos, ele simplesmente quer saber dos resultados o mais cedo possível. Mas a coroação de um imperador africano significa pouco ou nada para ele. Ele pode ler sobre isso na segunda ou na terça-feira, não ficará impaciente. Tudo que ele quer da África é algo que o divirta durante a viagem de trem ao trabalho. Ele terá a mesma diversão seja ela na terça quanto na segunda-feira.O dia de atraso fará diferença, para o correspondente no local, se ele terá tempo para desenvolver uma matéria detalhadamente informada (e, em quase todos os casos, quanto melhor informada é a matéria, maior é o entretenimento que oferecerá ao leitor). Ou pelo menos isso faz esta diferença. Os fatos dentro de um jornal se tornam divertidos e excitantes a medida que a eles é dada a credibilidade de eventos históricos. Qualquer pessoa, sentada por algumas horas a frente de uma máquina de escrever, é capaz de compor uma matéria que seria ideal a qualquer editor de notícias. Desenvolveria algo sobre mortes dramáticas na família real, trens descarrilhados, lançaria o país a guerra civil, descreveria brutais e insolúveis assassinatos. Todas estas coisas seriam profundamente interessantes ao leitor a medida que ele acredita que se tratam da descrição da verdade. Se lhe fossem oferecidas como ficção tornariam-se imensamente insignificantes. (E isto demonstra a imensa lacuna que separa o escritor do jornalista. O valor do romance depende do padrão que cada livro desenvolve para si mesmo; eventos que não possuem nenhum valor como notícia podem ganhar um valor qualquer de importância de acordo com seu lugar na estrutura de um livro assim como de sua relação com outros eventos da história, da mesma forma que cores secundárias são capazes de ganhar grande intensidade em certas fotografias). O prazer de se ler os jornais populares não vem, exceto muito indiretamente, do seu direcionamento político ou dos seus “artigos de opinião”, mas da hábil iluminação que lança sobre os lugares mais estranhos – frases ouvidas nas delegacias policiais, declarações feitas ao público em cidadezinhas do interior – que repentinamente revelam inesperados novos modos de vida. Se isso se tratasse de pura invenção perderia todo o seu interesse. Assim que alguém perceba que tal reportagem foi escrita como uma sátira, propositadamente, por um jovem repórter sentado em seu escritório, não há mais nenhuma graça nas opiniões indignadas tão dogmaticamente expressas na coluna das correspondências.

quinta-feira, outubro 06, 2005

Enfim, o plebiscito*



*ou referendo, como corrigiu o Gravata ali nos comentarios.

Sim, meu voto é pela proibição do comércio de armas no Brasil. No entanto, não me sinto confortável para fazer aqui alguma defesa do ‘sim’. Creio que, numa análise racional, há argumentos válidos de ambos os lados. Aliás, há tantos argumentos válidos, tantas interpretações possíveis das estatísticas, tantas hipóteses e possibilidades, que, sinceramente, não creio que seja possível chegar a uma conclusão, objetiva e pragmática, sobre qual decisão trará melhores resultados para esta nossa jovem sociedade tupiniquim.

Tomei minha posição, portanto, muito mais baseado em valores e princípios pessoais do que numa análise fria e racional. Não sei se isso é bom. Mas no minímo faz refletir sobre as possibilidades desta coisa chamada “democracia direta”. Um plebiscito, na verdade, não deveria gerar esse tipo de expectativa – análises lógicas e soluções racionais devem ser esperadas, isso sim, daqueles famosos grupos e comissões de estudo, tão desmoralizados pela incompetëncia dos nossos representantes. Plebiscito é checagem de valores, de opções morais, ideológicas e políticas.

Acho que, justamente por isso, tem me cansado todo esse debate. No início, argumentos de ambos os lados me pareciam coerentes. Abri a cabeça, me propus a refletir. Depois, foram me chegando, também dos dois lados, as patetices, os reducionismos, as chantagens emocionais, as capas de revista, os sonhos românticos, a demagogia. E concluí o que já disse antes – há análises e estátisticas para todos, e só se faz uso delas para corroborar e legitimar posições já pré-estabelecidas. E aí, chafurdar numa discussão dogmática se torna muito tedioso.

Tem me espantado, entretanto, ver uma quantidade grandes de amigos defendendo o “não”. Como eu mesmo já me senti balançado por alguns argumentos, procuro entender. Mas vejo muita gente escolhendo o “não” apenas pela desilusão, pela descrença que haja alguma mudança, por não acreditar que isso vá gerar algum efeito real. Dizem não querem comprar gato por lebre, que o plebiscito é apenas um golpe demagógico do governo. Eis aí o verdadeiro efeito do “mensalão”. Desta vez, há muita gente preferindo varrer seus valores e sua esperança para debaixo do tapete, e optando pelo medo. Amadurecemos? Ou estamos apenas paralisados pelo trauma?

Enfim, nem queria ter tocado nesse assunto. Mas os macaquinhos aqui no sotão não paravam de se mexer, precisava colocá-los para fora. Para não concluir sem citar nem mesmo um argumento a favor da minha posição, tomo emprestadas as palavras do Firpo, um dos gaúchos lá do Insanus que ficou do lado do “sim”. Acho que ele conseguiu resumir meus motivos:


(...) vou votar sim porque tendo a preferir soluções disruptivas. Acho que, se nada de radical for feito a respeito - e o Estatuto nem é tão radical assim, convenhamos - a situação só tende a se deteriorar.

(...) É possível que, aprovado o Estatuto, a situação melhore, como indicam as reduções de óbitos por arma de fogo nos últimos meses, certamente reflexo da campanha de entrega de armas; também é possível que ela piore e que realmente aconteça o cenário mad max que os adeptos do "não" usam como espantalho; e também pode ser que nada aconteça, fique tudo na mesma.

Em qualquer um dos casos, pelo menos se buscou uma solução diferente.

segunda-feira, outubro 03, 2005

Ataque pelos flancos



Talvez o segredo seja começar as coisas aos pouquinhos, enfrentar os problemas aos pedaços. Comer o prato pelas bordas, como dizem. Para que começar a ler Cortázar pelo "Jogo da Amarelinha"? Ou visualizar Borges como um velho e caolho professor de literatura inglesa que adora preencher seus contos com citações e teses indevassáveis? Parece ser gostoso romantizar as pendências, torná-las tragédias, ciclópes imortais, dragões indestrutíveis. Transformar o copo d'água numa tempestade tropical sempre valoriza o esforço empenhado. Mas ainda é possível ir mais longe – atingir o estado-da-arte da super-valorização exagerando a dimensão do muro ao ponto de a única solução razoável seja não ultrapassá-lo. Enfim, alcançar o desejável estado da procrastinação justificada.

E então volto ao começo – mas para que começar a ler Cortázar pelos labirintos do "Jogo da Amarelinha"? Não, não. Melhor comer pelas bordas.

Foi o que acabou me acontecendo ano passado, quando decidi empenhar meus 30 dias de férias num curso de espanhol em Buenos Aires. Não que seja necessário ir até Buenos Aires para começar a ler Cortázar (ainda que isso seja extremamente recomendável, e que tenha valido cada centavo). Mas tive a sorte de ter aulas com um professor que era também estudante de Literatura. E o literato sujeito, que além disso tinha também ótimo gosto, gostava de utilizar seus autores preferidos como material de classe.

Então ele trouxe “A Casa Tomada”, um conto do Cortázar. E eu falava também do Borges, e ele trouxe “A Intrusa”, do velho caolho. E então, depois de dois passos simples e pequenos, percebi que a melhor maneira de conhecer Buenos Aires era ler mais coisas como aquelas. Tinha que transformar aqueles dois escritores, antes gigantes intransponíveis, em meus guias de viagem.

Por sorte estava na cidade certa para se procurar livros usados. Comprei “Todos os Fogos, o Fogo”, do Cortázar e “Antologia Pessoal”, do velho caolho. Magníficos, de cabo a rabo. Borges tem sua dificuldade, não só pela erudição, mas pelo seu universo imensamente particular. Mas é o caso clássico do empenho que torna o prazer mais saboroso. Cortázar, por sua vez, é pop no melhor sentido do termo (se ainda preservou-se algum). Possui o apelo instantâneo, a fisgada inevitável, e é ao mesmo tempo inteligente, mordaz, irresistível. “A Autopista do Sul” é dum esquematismo genial. “Senhorita Cora” rasga a alma. “A Ilha ao Meio Dia” é mágica.

Comer pelas bordas, talvez seja esse o segredo. E escrevi tudo isso porque acabei de ler agora “O Informe de Brodie”, um dos últimos livros de contos do Borges, e aquele “Evangelho Segundo Marcos”, meu Deus, me impediu de ficar quieto no meu canto. É bom demais. Comer pelas bordas, é isso.