sexta-feira, maio 05, 2006

Livros






"Mãos de Cavalo", de Daniel Galera
(texto também publicado no site Scream&Yell)

Não estou bem certo agora, mas creio que foi algum filósofo ou alguma figura mitológica da Antiguidade que decretava um conselho básico para o ser humano e sua eterna busca pela verdade: "Conhece-te a ti mesmo". Saber claramente o que se quer da vida, ou melhor, alcançar conhecer a si mesmo com lucidez, continua sendo hoje uma tarefa para toda a existência. Um processo no qual, infelizmente, são poucos os que conseguem chegar perto de um resultado satisfatório - aquilo que chamamos de felicidade e paz de espírito.

Mas chega de especulações metafísicas. Porque Daniel Galera é extremamente concreto ao enfrentar essas questões em seu terceiro e mais novo livro, Mãos de Cavalo , lançado nesta semana pela Companhia das Letras. No livro intercalam-se duas histórias. Na primeira, temos a trajetória de um garoto que, dos dez aos quinze anos de idade, metido em suas aventuras de bairro, entre corridas de bicleta e campinhos de futebol, vive justamente as primeiras descobertas em relação à sua própria identidade. Na segunda, um jovem cirurgião plástico que, ao chegar aos trinta anos depois de uma rápida, árdua e bem sucedida trajetória de estudos e experiências profissionais, começa então a colocar sua escolhas em cheque, bem no momento em que sai para uma longa viagem com um amigo.

É claro, e logo se consegue fisgar a isca, que as duas trajetórias pertencem na verdade a uma mesma pessoa. No livro, no entanto, elas são tratadas como quase independentes e Daniel Galera, com habilidade, costura os capítulos e mistura as referências de uma maneira que traz ao leitor um grande prazer em acompanhar, ele próprio, o processo de auto-descoberta vivido pelo personagem. Tanto o garoto como o cirurgião vão descobrir que, tragicamente, só se conhece a própria identidade a partir de eventos-limite, extasiantes ou cruéis, momentos que vão ser carregados pela vida a fora. Entre ritos de passagem e acertos de contas, forma-se um indivíduo.

Durante as duas trajetórias, Galera não perde a oportunidade de explorar temas bastante interessantes. O fascínio pela violência estética em contraponto à covardia frente a agressividade real, o recalque das emoções, o desejo e a impressão de ver nossas vidas registradas pelas lentes de uma câmara de cinema. O protagonista de Mãos de Cavalo não é uma pessoa simples, talvez ninguém seja mesmo. E pouco a pouco o vemos exposto pelo autor. Através das descrições ultra-detalhistas de cada situação, vemos dissecadas suas impressões frente a cada situação, seja ela o descer vertiginoso de uma ladeira montado numa CaloiCross aro 20', seja testemunhar o ventre de sua esposa ser rasgado durante o parto enquanto a anestesia ainda não funcionava.

Um dos pontos mais atraentes de Mãos de Cavalo, e aqui não há como esta opinião deixar de soar bastante particular, é a empatia “geracional” oferecida pela história. Identificando-se como contemporâneos do protagonista (e também praticamente do autor, já que Daniel Galera tem 27 anos de idade), qualquer homem de trinta anos que ler o livro vai inevitavelmente ser atacado pela nostalgia. Vai se lembrar de alguma pequena aventura da infância, uma invasão de algum terreno baldio ou uma intriga belicosa com a turma da rua de baixo. Ou mesmo apenas sentir saudades de eventos cotidianos, como ir jogar video-game na casa dos amigos ou jogar futebol na rua. Imediatamente lhe virá a cabeça a trilha sonora que mais lhe aprazia na época e, sem perceber, estará mergulhado no meio de suas próprias recordações. No entanto, há no livro também uma outra história, a crise dos 30 anos de um cirurgião plástico, cheia de culpas e reavaliações, e então, de um capítulo para o outro, o mesmo leitor vai ser expulso da nostalgia e será jogado numa dolorosa e frenética busca por paz e redenção. Talvez a grande conquista de Mãos de Cavalo seja conseguir gerar essa empatia e, ao mesmo tempo, tratar de assuntos tão pouco simples.

A dúvida que fica é a seguinte: o livro funciona apenas em razão desta identificação geracional? O personagem funciona apenas por que viveu situações características de nossa própria época de vida? Se a resposta for positiva, cria-se a hipótese de Mãos de Cavalo ser um livro recomendado apenas para homens com mais-ou-menos trinta anos de idade.

Mas a aposta é que não. O nível de maturidade exibido por Daniel Galera, a forma incisiva e objetiva com que ele expõe seu personagem, faz acreditar que o autor conseguiu ultrapassar uma mera afinidade de geração com sua narrativa. O personagem não funciona apenas porque nos é contemporâneo. Nos identificamos, na verdade, com a complexidade daquele sujeito. Afinal, Galera não oferece saídas fáceis, nem arrisca interpretações psicanalíticas simplistas. Ao ponto que, no final, admita-se, fica a tentação de querer mais respostas, fica um sentimento de carência de razões e significados mais objetivos. Mas querer isso talvez seja justamente negar a profundidade alcançada pelo personagem.

O nome de Daniel Galera surgiu, inicialmente, ligado à turma de estudantes gaúchos que publicava o já falecido e-zine Cardoso OnLine. O COL, como era carinhosamente apelidado, foi um dos primeiros fanzines distribuídos por e-mail e, na época, era certamente aquele com maior alcance e repercussão. Mais tarde, Galera fundou, junto com o também escritor Daniel Pelizzari, a editora Livros do Mal, pela qual publicou seus dois primeiros livros, a coletânea de contos Dentes Guardados, também traduzida e lançada na Itália, e o romance Até o Dia em que o Cão Morreu, que está sendo adaptado para o cinema por Beto Brant. Os dois primeiros livros de Galera são também ótimos e valem muito a pena serem lidos. Geram a mesma empatia mas, diferentemente de Mãos de Cavalo, seriam classificados mais adequadamente na categoria "livros que eu gostaria de ter escrito aos 22 anos de idade". Com seu último livro, a impressão é que Galera somou maturidade à sua costumaz capacidade criativa. Seja apenas mais um retrato de sua geração ou não, o que importa é que sua literatura continua agradando, dando prazer e fazendo pensar.



P.S.: Dentes Guardados está disponível para download gratuito no site do autor. Aproveite.

P.S.2: Lá no Scream&Yell também há um outra resenha bastante interessante sobre o livro, escrita pelo Moreno Osório.


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