sábado, novembro 10, 2012

A Inteligência Política de Obama

Tradução livre do texto de Adam Gopnik, publicado no site da revista The New Yorker


A noite da última terça-feira foi muito bonita para aqueles que admiram o Presidente Obama por seu temperamento, sua inteligência, sua calma, sua decência e também por sua recusa, diante da óbvia e intensa pressão de suas filhas, em comprar um segundo cachorro. (E vamos admitir isso de uma vez por todas: é uma delícia ter um cachorro - mas um só é o suficiente). A noite de terça serviu também para sacramentar o Fenômeno Obama. Por uma concreta, ainda que pequena, margem - ou seja, como uma necessidade do destino, mais do que uma mera contingência política.

Ainda se trata de uma das mais fantásticas trajetórias na história da América: um rapaz negro de Chicago, com um estranho nome africano e sem nenhum grande feito no currículo além de um brilhante discurso em 2004 e um bonito e introspectivo livro de memórias autobiográficas, se torna o mais importante personagem do ainda todo-poderoso Império Americano. Nada de tão improvável aconteceu numa democracia, ou semi-democracia, desde os tempos de Disraeli.

E, uma vez mais, nos espantamos diante da capacidade dos adversários de Obama de odiá-lo com tanta paixão. Um homem que até mesmo suas filhas adolescentes devem ter dificuldade de contrariar, um homem que nunca demonstra raiva, que sempre busca a conciliação, mesmo sob risco de prejuízo próprio, e que dificilmente disse algo rude, mal-intencionado ou destemperado durante toda sua vida pública.

No entanto, basta assisti-lo subir até o palco e tomar seu lugar no púlpito para entender algumas das razões de tanto ódio. Obama é, acima de tudo, calmo, tranqüilo – é auto-suficiente, e essa auto-suficiência, essa tranqüilidade explícita, que é vista, até mesmo por seus admiradores, como um certo distanciamento, uma ironia perante sua própria eloquência, deve transmitir aos seus detratores um desapego e arrogância insuportáveis. John Kennedy, que tinha a mesma característica do distanciamento, foi muitas vezes acusado, com bastante justiça, de ser ensimesmado e indiferente aos outros. Não se sentia obrigado a agradar ninguém. Mas, ainda assim, odiá-lo? De que forma exatamente? Por que, precisamente? (Republicanos, que já tiveram a oportunidade de assistir à impotência e indignidade dos Democratas odiando Reagan, o seu próprio “sujeito auto-suficiente”, já deveriam saber lidar com isso). Mas é inevitável. Todo mundo admira o cara que ganha tudo e mal derrama uma gota de suor – menos aqueles que estão disputando a corrida ao seu lado, que preferiam, pelo menos, que aquele cara parecesse ter se esforçado um pouco. Um homem que é tão auto-suficiente, disse o filósofo, nem sempre reconhece as carências dos outros. (Alguém duvida que Bill Clinton adoraria ser mencionado no discurso da vitória do Presidente? Ele não obteve essa honra mas, sendo um homem com muito mais sensibilidade, certamente ele teria citado Obama, se os papéis da noite estivessem trocados).

O fato realmente estranho no pronunciamento da vitória foi que Obama retornou, com paixão e sinceridade evidentes, aos temas daquele primeiro e belo discurso das prévias Democratas em 2004: a unidade nacional; somos menos divididos do que nossa política parece sugerir; não existem “Estados Republicanos” ou “Estados Democratas”. “Não, não!” parecem querer intervir alguns de seus admiradores: “Preste atenção ao que aconteceu durante os últimos quatro anos, Sr. Presidente! Somos definitivamente tão divididos quanto sugerem nossas disputas políticas. É, na verdade, por essa razão que nossa política é assim.”

Persistir acreditando em algo já tantas vezes refutado pela realidade é parte do dom de Obama. Apesar de seu mandato ter sido bem sucedido – a reforma do Sistema de Saúde, políticas econômicas racionais, Juízes da Suprema Corte lúcidos, fim da tortura, e todo o resto – o seu projeto político mais específico foi, de diversas formas, um fracasso. No começo de seu primeiro mandato, Obama claramente pensava que suas tão evidentes qualidades, sua boa vontade, sua  inteligência e vontade de conciliação – qualidades que ele também julgava como evidentes, já que a modéstia, assim como a carência, também não faz parte das armas do “sujeito auto-suficiente” – tudo isso faria com que o pessoal da direita, pelo menos os mais racionais, viessem para o seu lado, assim como afastaria os mais radicais de ambos os partidos. Mas isso não aconteceu. Nem perto disso. Assim, é fácil perceber por que alguns de seus apoiadores (Chirs Matthews, por exemplo) ficaram, apesar de toda a euforia da 2ª vitória, um tanto exasperados – não vamos repetir isso tudo de novo, vamos?

A verdade, no entanto, é que existem razões claras que explicam por que Obama é um fenômeno e uma delas é possuir uma inteligência política tão afiada que o permite perceber rapidamente quando uma ilusão lhe é útil. Inteligência política é um dom tão distinto e intuitivo quanto qualquer outro tipo de inteligência – a inteligência motora de um atleta, ou a inteligência analítica de um intelectual – e um grande componente da inteligência política reside na fidelidade que o líder demonstra às suas próprias ficções. O novo filme de Spielberg, “Lincoln”, nos lembra (ou nos fará lembrar, quando for lançado mais amplamente), que toda a conduta de Lincoln no seu mandato durante a guerra civil se baseava na ficção de que a secessão, a divisão “Norte-Sul” dos EUA, nunca havia de fato ocorrido – que o Sul não era uma nação rebelde, mas apenas um bando de foras-da-lei se organizando em gangues e fazendo arruaças. O que era fácil constatar que acabava de ter acontecido – um grupo de estados se tornando uma nação em separado – simplesmente não tinha acontecido. Essa ilusão de continuidade, de união indissolúvel mesmo diante de sua evidente dissolução, era essencial à causa de Lincoln e às suas próprias crenças.

À lista de – como poderíamos chamá-los? – nobres mentirosos (um tanto duro, mas creio que transmite algo do conceito) deveríamos adicionar muitos outros grandes políticos. Franklin D. Roosevelt, com sua afirmação de que o medo era tudo que tínhamos a temer, quando havia muita coisa bem real a ser temida; Reagan, da mesma forma, repetindo sempre seus mitos e mantras. Por hora, Obama precisa conhecer as vantagens de se brigar e os limites de se invocar a união. Mas ele sabe, da mesma forma, que um “sujeito auto-suficiente” não pode deixar de cultivar cuidadosamente o seu discurso mais querido, sob o risco de torná-lo vazio e irrelevante. Se toda esta habilidade pode fazê-lo ser visto às vezes como ingênuo, ou até mesmo como manipulador, bem, afinal, é ele quem é o fenômeno e não você. E foi ele quem bateu o pé e não cedeu ao segundo cachorro. 

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