quinta-feira, dezembro 04, 2003



Mariana

Mês passado, para comemorar minha travessia de mais uma primavera, fomos a um restaurante japonês no meio do sacolão da Vila Madalena. Lugar simpático, com boa comida e nem tão caro assim. Chamei alguns amigos queridos, os amigos chamaram seus agregados, e estávamos lá, eu, minha menina, amigos e agregados, todos comendo sushi e bebendo cerveja. Ou quase todos, claro, pois sempre há os abstêmios de peixe-cru e os apreciadores de Coca light.

Já passava da meia-noite e eu me divertia, surpreendentemente encantado pela capacidade daquelas pequenas doses etílicas terem me deixado tão leve e bem-humorado. Os amigos, por outro lado, já deviam estar analisando a perspectiva d'eu terminar a noite completamente bêbado. Foi nesse estado etílico perigosamente limítrofe que, para meu espanto, inventei de me enrabichar com outra menina.

O nome dela era Mariana e, alguns minutos atrás, ela havia nos oferecido flores. Sua abordagem foi certeira, não pude resistir. Mariana tinha olhos negros e redondos, tinha a pele branca, muito branca mesmo, e tinha os cabelos também negros, encaracolados. Escolhi uma rosa vermelha, de plástico, e a comprei. Mas Mariana não foi embora, ficou por ali, vagando pelas mesas, abordando outras pessoas. Aguentei um pouco, mas logo deixei minha menina aos cuidados dos amigos, abandonei a rosa sobre a mesa e fui, meio atrapalhadamente, conversar com Mariana.

Ela me contou que morava no centro da cidade, mas que, naquela noite, ia trabalhar até tarde. Tinha que vender todas as rosas antes de voltar pra casa. Era a missão que sua mãe lhe dera. Perguntei então se ela ia à escola, mas confesso com vergonha que não me lembro da sua resposta. Acabei comprando mais uma rosa de plástico.

Conforme ficava mais à vontade, Mariana também começou a fazer suas perguntas. Me questionou porque todas as pessoas da minha mesa tinham olhos azuis. Eu disse que não eram todas, imagina, só algumas delas. Foi quando Mariana me disse que não gostava da cor dos seus próprios olhos, porque, ao contrário daquele azul tão bonito, seus olhos eram pretos.

Tadinha da Mariana, a partir daí ela teve que aguentar outro tanto do meu papo furado. Disse a ela que seus olhos eram olhos de jabuticaba. Ela ficou curiosa, a espertinha, e quis saber o porquê. Contei então sobre uma tal Capitu, personagem de um livro importante, no qual também havia um tal Bentinho, um moço completamente apaixonado por ela e por seus olhos negros e redondos. Preferi não comentar nada sobre a cigana dissumulada e sobre o filho bastardo pois, mesmo algo bêbado, acertadamente achei que não valia a pena entrar em certos detalhes.

Quem me olhasse ali, um sujeito semi-calvo conversando com uma menina de 8 anos de idade, não hesitaria em me julgar um patético pedófilo jogando malemolência pra cima de uma pobre criança carente. Bastava ter um pouco de malícia no coração e precipitação no julgamento. Posso garantir, no entanto, que não era nada disso.

Minha menina, a que é oficial e já é maior de idade, disse certa vez que eu vou adorar ter uma filha. Nunca havia pensado que, numa potencial paternidade, eu poderia ter alguma preferência de sexo. Sempre acreditei que isso era besteira, que viesse o que viesse. Hoje sei que ela tem razão. Eu adoraria ter uma filha. E ali, com a ajuda de algumas cervejas, Mariana escavou alguns sentimentos recalcados num boboca que tinha acabado de completar 28 anos. Despertou a vontade solidária e demagógica de oferecer meio dedo de prosa e atenção a uma criança que trabalha na rua. Alguns chamariam isso de culpa, pode ser, não me incomodo. Mas, muito além disso, o que eu via em Mariana era a própria possibilidade de ser pai um dia, de cuidar de uma menina linda como ela, de o quanto isso podia ser extremamente legal.

Sei que foi uma troca cruelmente injusta, desigual e exploratória. Mas, naquela noite, Mariana me fez feliz.

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