quinta-feira, novembro 13, 2003



Antonio e o Muro

Seus olhos brancos e grandes brilhavam estalados por detrás da janela. Apontavam para o muro do outro lado da estrada, congelados, vidrados. Não que ali houvesse algo diferente para olhar, aqueles olhos não procuravam por nada.

Antonio abaixou a cabeça e olhou para a xícara que esquentava suas mãos. Quem passasse por ali naquele instante, e olhasse pela janela da guarita, não veria nada. Não havia luz ali dentro. Antonio mexia o café e pensava que aquela mistura com remédios tinha começado a deixá-lo meio besta. Mas aquilo era bom, principalmente nestes dias de troca de turno, deixava a mente acordada. O que era necessário. Mesmo que ninguém passasse por ali numa hora daquelas, precisava ficar sempre atento ao rádio. Afinal, alguma coisa podia acontecer em algum outro lugar.

Era preciso ficar atento, costumava dizer o sargento. De todo o tempo servido em Varginha, a coisa que mais havia lhe ficado na cabeça era aquela frase. Na verdade, a frase era outra – tem que ficar esperto, filho da puta. Aquilo era lição para toda a vida, disse a mãe depois do seu desligamento. Toda a vida.

Estava era cansado de ficar ali sentado. O cubículo mal dava para esticar as pernas, mas lá fora estava frio, e o café ainda estava quente. Antonio girava a colher, arranhando as paredes internas da xícara. Aquele redemoinho era engraçado. Deixava o café espumante e ele gostava daquilo.

Depois do quartel, até conseguir um lugar na firma, o tempo que se passou foi muito. Tempo inútil, desgraçado, mas depois, quando conseguiu o emprego, depois foi bom. Segurança Patrimonial, a firma. Mas, como lhe haviam dito, ele não era um segurança - ele era um vigilante. Para poder vigiar, portanto, fez treinamento de luta marcial, direção defensiva, combate ao fogo, sobrevivência na selva. Mesmo já sabendo atirar desde o quartel, fez o curso de tiro de novo. Não custava e, afinal, tudo aquilo era necessário para a função. Aprendizado para toda a vida, sobretudo. Mas, como lhe diziam, tudo aquilo podia não ser suficiente, o importante mesmo era estar sempre alerta, era preciso ficar atento.

O silêncio daquela noite perturbava. Desde que fora transferido para aquele posto, era quase sempre assim. Piorava quando pegava o turno da noite. Se durante o dia o movimento na estrada já não era muito, à noite não havia alma viva passando por ali. Dois meses atrás, havia sido alocado para prestar serviço numa siderúrgica. Seu posto, este mês, guardava o portão dum depósito de alguma coisa. Precisava ficar atento, era preciso proteger o patrimônio da empresa. Não que por ali passasse muita gente para ameaçar a empresa. Não que houvesse ali grande patrimônio.

Depois de um tempo na firma de segurança, tentara entrar para a polícia. Tinha uns amigos lá dentro, achava que todo aquele treinamento podia ter alguma serventia. Queria mesmo era trabalhar na Roubo a Bancos, todos falavam que ele era fera, que devia tentar, que ali faria sua vida. Mas não passou no concurso, que a vida fique assim então.

O relincho de uma brecada brusca, dois estampidos ao longe, e os olhos de Antonio estavam estalados no muro branco de novo. Na semana passada acontecera a mesma coisa. Havia ouvido dois estrondos também e, logo depois, dois carros da polícia haviam passado em disparada. Agora aquele barulho de novo. Seus olhos ficaram ali, fixos, por uns cinco minutos. Desta vez ninguém passou pela estrada. Antonio caiu em si, abriu a gaveta com agilidade e, através do rádio, tentou alcançar a outra guarita localizada no outro extremo do depósito. Como não atendiam, pensou em tocar o alarme. Atenderam. Tudo na santa paz. Não era nada.

Não era nada, dizia sempre a mãe depois do tombo. O importante era perseverar, ela dizia. Mesmo que nunca fosse nada. Mesmo que nunca desse em nada.

Em pouco tempo o silêncio era completo novamente. O lugar era tranqüilo, pelo menos, ele não podia reclamar disso. Sempre gostara de ficar sozinho. Mas ali não havia nada para olhar. Com exceção do muro branco, claro. Antonio vigiava então, sempre atento, aquele grande muro branco. Sem procurar por nada.

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