Ontem saí cedo do escritório. Multi-nacional automobilística tem disso, expediente acaba às 5. Chefe não estava, fechei a internet, desliguei o micro e me fui. Sexta-feira, mas com planos tranquilos: ir ao cinema e voltar cedo pra casa. Minha menina estuda de sábado, tem que acordar cedo. Pós-graduação não é mole. Peguei meu carro logo ali na rua, onde o tenho deixado para economizar o estacionamento. Sabe como é, de grão em grão... Fui até o apartamento, deixei o carro ali e peguei o metrô até a Paulista. Acho mais fácil e além disso era meu dia de rodízio. Desci na Consolação e fiquei um pouco perdido ao sair da estação. Pra que lado é o Conjunto Nacional mesmo? Tentei encontrar algum prédio que me servisse de referência, mas foi em vão; tanta gente na rua, carros, luzes e algumas construções novas me confundiram. Mas as opções eram só duas, esquerda ou direita, e acabei acertando. Ela estava lá me esperando, demos as mãos e descemos a Rua Augusta. A sessão começava às 7:10.
Em 1986 entraram na minha casa. Eram 5 moleques e eu estava jantando. Era hora de meu pai chegar, mas hoje ele viera acompanhado. Dois deles eram gêmeos, com cabelo meio vermelho; um deles era bem negro, magro, baixo. Acho que também tinha um mais velho. Me lembro das armas em algumas mãos. Levaram a gente pro quarto da minha mãe e começaram a revirar as gavetas, os armários, pediram pro meu pai abrir o cofre. Aquele cofre sempre me deixara curioso. Lembro dele sempre vazio, sem nada mesmo. Acho que meu pai guardava um revólver dentro de uma das gaveta, algo assim. Colocaram eu, minha irmã, irmão e a empregada dentro do banheiro e ficaram com meus pais no quarto. Estranho, tinha só dez anos, mas quando a empregada começou a invocar a Deus, eu me lembro tranquilo, dando uma risadinha nervosa e pedindo pra ela ficar calma. Não ia acontecer nada. Realmente não aconteceu. Todos ficamos bem. Uma vizinha tinha visto algo estranho e a polícia estava na porta quando eles saíram. Mataram dois moleques, prenderam dois e o outro fugiu. Ainda prenderam na construção ao lado a nossa ex-empregada, que tinha planejado toda a coisa. O que sumiu foi só um colarzinho com pingente da minha mãe. Engraçado, eu me lembro daquele pingente até hoje.
Gostamos de dizer que o Brasil é a oitava economia do mundo, que somos um país emergente, reconhecido internacionalmente e com importância crítica no cenário globalizado. Afinal, o mercado internacional não pode desprezar um país que tem 15 milhões de consumidores com potencial de 1º mundo.
E vamos vivendo. E as crianças no farol tornam-se parte da paisagem. E os crimes no Cidade Alerta tornam-se entretenimento para meus avós amedrontados. O perigo está lá fora, tranquemo-nos em casa. Mas vamos vivendo.
E raras são as vezes que nos lembramos que aquele promissor mercado consumidor de 15 milhões de pessoas corresponde a apenas 10% da população do país. Que a quantidade de gente que tem carro e vai ao cinema não deve passar muito disso. Que quem tem curso superior e consequentemente tem a chance de trabalhar no escritório de uma multi-nacional americana, representa meros 4% dos brasileiros. Qual a quantidade de gente que tem problemas e reclama do rodízio? Ou quantos por cento já estiveram na Av. Paulista? Ou tem internet? Ou escrevem num blog?
Os jornais falam que Cidade de Deus é um espetáculo da violência, é um passeio turístico no inferno, é um cativante e estético exercício de exposição da miséria. Estão dizendo que, apesar de ser um filme ótimo, um marco no cinema brasileiro, e até mesmo um fato social e político, o filme peca por simplesmente mostrar a marginália e a violência sem colocá-las no contexto geral, sem analisar suas causas e raízes político-econômicas. Dizem que Cidade de Deus ignora os fatores externos, que no filme a favela é um organismo isolado, onde a violência tem vítimas e causadores internos e auto-suficientes.
Eu acho que eles não entenderam nada. Um filme não é um tratado sociológico completo e coerente. Um filme é uma perspectiva, é uma visão; se quiserem, é um dos lados da questão.
Cidade de Deus é espetacular como filme. É uma obra única. E como visão da realidade, coloca a câmera na perspectiva daqueles de quem raramente nos lembramos. Em Cidade de Deus a câmara está nas mãos de Buscapé. E isso já basta para o filme dar o que falar.