quinta-feira, junho 26, 2003



Cervejinhas com jabá

Alguns papos de mesa de bar são memoráveis. Lembro que já há algum tempo, acho que mais de ano talvez, tive a oportunidade de sentar em uma dessas mesas inesquecíveis, acompanhado de uma turma porreta. Era aniversário de uma, àquela altura, recém-grande-amiga minha, e minha menina e eu havíamos chegado para abrir a mesa com ela e mais um outro nosso recém-grande-amigo.

Ambos os recém-grandes-amigos trabalhavam naquela época em uma gravadora (isso mesmo, daquelas que lançam CDs e produzem artistas da música...), coisa que, confesso, exercia um certo fascínio sobre mim. Trabalhar numa gravadora, mexer com música, o dia todo, envolvido em muito sexo, drogas e rock´n´roll. É claro que a conversa começou em torno desse assunto, e, aos poucos, fui percebendo que os problemas de trabalho de todos não se diferenciavam em nada. Até porque, naquela gravadora, parecia que o sexo era nulo, as drogas esparsas e o set-list não era bem focado em rock´n´roll.

Pouco tempo depois, chegava à mesa uma nova integrante: a chefe da aniversariante. Bem, na verdade, ex-chefe, pois ela havia sido demitida da gravadora ainda naquela semana. Aditivo-extra para o papo: nada como se libertar dos grilhões empregatícios para aumentar a disposição de abrir o coração e desabafar as mágoas. E não existe lugar melhor para destilar veneno e soltar os cachorros do que uma mesa de bar.

Juntaram-se então a fome com a vontade de comer. A ocasião encontrou o ladrão. A ex-chefe tornou-se o foco das atenções. E como ela nos contava suas experiências com propriedade, e destilava seu pouquinho de veneno com muita classe, o papo tornou-se extremamente agradável.

Na verdade, a coisa por pouco não virou uma entrevista. Como o povo sempre quer sangue, a cada estória escabrosa sobre o submundo musical que a ex-chefe contava, nós clamávamos por mais. Bem, talvez tenha sido só eu quem clamava, mas enfim... Acabamos todos conversando um pouco sobre tudo, do dia-a-dia de trabalho às estratégias de mercado da indústria fonográfica, da incompetência do diretor artístico às aventuras sexuais do novo astro de música brega recém-contratado.

O assunto que dominou mesmo a mesa, porém, foi o famoso e polêmico "jabá". Não dá para esquecer a clareza com que a ex-chefe explicou todo o esquema para nós, leigos consumidores de música. É claro que ninguém ali era ingênuo a ponto de não saber da existência do jabá, mas digamos que pudémos ficar por dentro dos detalhes mais técnicos e interessantes da operação. Não vou esquecer, por exemplo, do conceito da "zona-de-conforto", estratégia utilizada pelas rádios. Mas já explico tudinho...

O esquema funciona assim: se alguém ainda não sabe, "jabá" é o nome do acordo comercial existente entre rádios e gravadoras. A gravadora, no interesse de aumentar a divulgação de seu artista e vender mais discos, compra a veiculação de determinadas músicas nas emissoras de rádio. E compra mesmo, especificamente, por número de vezes em que quer que a música toque. Segundo a ex-chefe, por exemplo, o grande e saturado sucesso da mais descolada cantora brasileira, "Amor, I Love You", foi o maior esquema de jabá já visto no país.

As rádios, do seu lado, traçam através disso uma lucrativa estratégia comercial. Sua programação é preenchida apenas por dois tipos de música. Quando não é "jabá", ou seja, música com veiculação paga (geralmente lançamentos de artistas comercialmente promissores), as rádios só colocam músicas que estejam na "zona de conforto" do público, ou seja, grandes sucessos e flash-backs que sejam minimamente agradáveis e reconhecíveis ao ouvinte e que o segurem sintonizado até a execução do próximo jabá.

Fora horários muito alternativos, só se ouve isso nas rádios: ou música paga, ou música famosa. A conseqüência lógica é que não há espaço para coisas novas e diferentes sem que isso seja devidamente comprado. Para as rádios, é um esquema extremamente lucrativo no curto prazo, mas que levou a uma completa padronização da programação das emissoras. Um tédio completo. Ou alguém aí ainda agüenta ouvir alguma das três rádios rock de São Paulo?

Pelo lado das gravadoras, o que era inicialmente uma esperta estratégia de promoção, transformou-se num fantasma mercadológico. As gravadoras, já com as vendas afetadas pela pirataria e pela internet, se tornaram cada vez mais reféns das rádios. Ou a gravadora paga, ou a música não toca. Para piorar, certas apostas em jabás milionários já acabaram se revelando grandes barbeiragens de marketing, não se pagando financeiramente.

A sinuca de bico é séria, também para as rádios, mas principalmente para as gravadoras. E não há muito sinal de inovação ou recuperação. Tanto que, além da ex-chefe, também os outros dois recém-amigos que trabalhavam na mesma gravadora naquela ocasião já não trabalham mais lá. Não tenho nem notícia se a tal gravadora ainda existe.

Enfim. Pode vir a recessão, podem nos dar música ruim, podem arrochar os salários, pode a vida endurecer. Mas que não nos tirem as mesas de bar pra gente desabafar, fazer planos, falar besteira e cair risada.


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