segunda-feira, junho 23, 2003



Eu vou pra Maracangalha

A gente se cansa de ler no jornal, todo o santo dia, que a tal reforma da previdência é urgentemente necessária, que o sistema atual consegue ser, ao mesmo tempo, injusto e inviável, que as contas não fecham, que etc e tal. A gente lê, concorda, vira a página e vai cuidar da vida. A ladainha se torna tão cotidiana que aquilo adquire um tom de normalidade. E passamos a nem mesmo pensar sobre os absurdos que se colocam bem à nossa frente.

Hoje, esta notícia me despertou para esse assunto de novo. Como se me jogasse na cara algumas aberrações novamente e fizesse cair algumas fichas já velhas. São obviedades, é claro, mas tenham dó mim, sou apenas um simples e cotidiano estúpido econômico.

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A estória velha é a seguinte: os funcionários públicos já aposentados recebem, de praxe, o mesmo salário que recebiam quando estavam ainda trabalhando. Aposentados ou ativos, ambos tem o direito ao mesmo vencimento, apenas com uma diferença: para os aposentados já não há mais o desconto da contribuição previdenciária.

Eis então a minha brilhante e aterrorizante dedução: dentro desta lógica, um funcionário público aposentado é mais caro para o Estado que um funcionário público na ativa. Conseqüentemente, quanto menos funcionários o Estado tiver, menor será sua receita de contribuição previdenciária, ou seja, maior seu prejuízo no final das contas.

Numa mecânica destas, tentar tornar o Estado mais enxuto e eficiente, ou seja, gastando menos e melhor, se torna economicamente inviável. Simplesmente isso quebra a Previdência.Quanto menos funcionários públicos ativos o Estado possuir, maior será seu rombo para pagar os já aposentados. Rombo que deverá ser pago ou com dinheiro vindo do Tesouro (palavrinha bonita, usada como eufemismo para aquela agradável quantia tungada do seu holerite todo o mês à título de imposto de renda) ou com dinheiro novinho, impresso na hora e prontinho para gerar inflação.

Nessa realidade, que lógica poderia motivar um Governo a se tornar mais eficiente?

É novas, diria uma gíria da minha adolescência...

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Este é um país engraçado. Alguém que tenha um pouco de preocupação com a justiça social poderia afirmar, honesta e sinceramente, que não se deve abrir mão das conquistas que já foram feitas na luta por esse objetivo. E afirmaria sem hesitar que um sistema de Previdência Social é peça chave para garantir o mínimo dessa justiça, prover o mínimo de igualdade quanto aos direitos de sobrevivência dos cidadãos, corrigir alguns perigosos desequilíbrios gerados pelo mercado.

O fato real é que, infelizmente, nosso sistema de Previdência Social não é, nem nunca foi, caracterizado pela justiça social. Pode até gerar algumas esmolas em serviços ineficazes para o cidadão. Mas, no final das contas, trata-se de um sistema aristocrático e patrimonialista.

Aristocrático porque, mesmo sem sangue-azul, criou-se no Brasil uma nova casta de nobres. Porque, mesmo com todas as justificativas que possam me dar, não consigo deixar de ver como imoral que uma determinada parte da população tenha direito de receber na aposentadoria uma quantia proporcionalmente três ou quatro vezes maior que o restante da população. Porque, afinal, existe uma Previdência para o funcionalismo público e outra para o restante da população? Isso sem falar das classes especiais, vencimentos acumulativos, aditivos diversos e outras benesses.

Patrimonialista, porque tudo isso não deixa de ser uma oficial e sistemática tungada no patrimônio público. Porque simplesmente transfere riqueza de uma parte da população para outra parte. E porquê? Não há explicação, simplesmente é assim.

Tem toda razão quem disse (acho que foi o Roberto DaMatta) que o Brasil é o país das classes organizadas. Não é um país de desequilíbrios simplesmente capitalistas, onde o cruel livre mercado explora e entrega o proletariado ao Deus dará. É um país onde quem se dá bem são as classes que são organizadas para explorar o patrimônio público (geralmente quem trabalha no governo, para o governo ou com o governo). E o resto que se lixe. Ou melhor, que pague a conta.

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E aí vemos um excelentíssimo juiz justificando as suas benesses de aposentadoria frente aos demais trabalhadores com a seguinte frase: “Eu discordo dessa comparação, com todo o respeito aos cortadores de cana. Eu, por exemplo, não sei cortar cana, mas eles não sabem julgar". Um juiz, isso mesmo, aquele sujeito que supomos ter discernimento sobre as coisas e ao qual delegamos o direito de julgar destinos. Não um juizinho qualquer, não, mas o sim o presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

Esquece-se o meritíssimo que um sistema de Previdência Social não é criado para reconhecer o mérito do profissional. Para isso existe o dinheiro que ele ganha todo o mês, que, no caso do Sr. Juiz, é com toda a garantia algo maior que o dinheiro recebido pelo cortador de cana. A Previdência Social deveria existir para garantir os direitos básicos do cidadão após sua retirada da população economicamente ativa. Se quiser fazer mais do que isso, a Previdência quebra, como já está acontecendo. A aposentadoria do Sr. Juiz deveria ser, no mínimo, proporcionalmente igual à do trabalhador rural frente aos rendimentos de cada um na ativa.

E ainda se fosse assim, não se estaria realizando nenhuma prática de justiça redistributiva, ou nada que se pudesse taxar de prática "socialista".

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É claro que não existe qualquer bom senso no que o Sr. Juiz disse. A única lógica na qual o seu argumento está sustentado é a lógica da sustentação dos privilégios aristocráticos já adquiridos. Num país onde até os juízes praticam a lei do “vamos proteger o que é nosso”, não é à toa que a Lei de Gérson impera e que cada um se preocupe apenas em defender o seu pitaco, levar a maior vantagem possível em tudo.

Como então clamar por ética? Ou por uma simples coerência de idéias, lógica ou bom-senso?

Chega a ser hilário discutir ideologias ou caminhos para o país. Debater-se entre direita ou esquerda, monetaristas ou desenvolvimentistas. A única ideologia que parece ser válida no Brasil é a defesa do próprio bolso.

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É dentro desta lógica que o funcionalismo público diz que é injustiçado, que virou bode-expiatório dos problemas nacionais. É inocência querer exigir deles qualquer coerência ou bom-senso. Estão calcados na defesa dos seus previlégios. Pois sabem que é essa a lógica que comanda o país.

Não se trata aqui de acreditar que funcionários públicos vivem como marajás em palácios nababescos. É claro que a grande maioria leva uma aposentadoria muito diferente disso. Não se trata também de dizer que eles são os maquiavélicos arquitetos culpados por este vil sistema. Como já disse antes, eles apenas tratam de se defender dentro da lógica tupiniquim.

Isso tudo, porém, não anula o fato de que seus privilégios tornam o sistema de Previdência Social injusto e inviável.

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Neste mundo capitalista, globalizado e caracterizado pela eficiência, defender um sistema desses é dar um tiro no pé. No horizonte, a Previdência quebra. E quem paga a conta, como diria Elio Gaspari, é a patuléia. A alta nobreza, da qual aquele Sr. Juiz faz parte, logicamente se salva, blindada em carros importados e protegida por senhas bancárias secretas. No andar térreo, porém, o médio e baixo funcionalismo, que hoje insiste em se defender seus parcos privilégios, vai acabar é pagando o pato. Pato aliás que já estão pagando, vide o congelamento de seus vencimentos há vários anos.

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Um bom exemplo de que a bomba tarda mas estoura, pode ser visto agora no setor "pseudo-privado". Trata-se da fusão das duas maiores empresas aéreas do Brasil. TAM e Varig entram na nova empresa com uma participação acionária irrisória: respectivamente 30% e 5% do capital total. O restante do patrimônio da empresa pertencerá a novos investidores que colocarão ali a grana necessária para cobrir os rombos das atuais sucateadas companhias. Chega a dar pena pensar em como duas empresas desta estatura puderam atingir um fundo de poço tão profundo. Com redundância e tudo.

De que adiantou, então, para os funcionários da Varig, por exemplo, garantir até hoje os excelentes benefícios garantidos pela administração da Fundação Rubem Berta (a fundação dos próprios funcionários da empresa, que era também a controladora acionária, dona mesmo, da companhia) se essa administração levou a empresa à falência?

Os empregados da Varig, que sempre tiveram assistência odontológica gratuita para toda a família, correm agora o risco de ficar até mesmo sem aposentadoria. Isso porque a Varig deve mais de 800 milhões de reais para o Aerus, o fundo de pensão dos aeronautas.

Economia é administrar recursos escassos. E não dá pra fugir dessa regra.

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Enquanto alguns mantém suas ilusões e outros defendem seus cofrinhos, nós vamos vivendo, pagando impostos e virando a página do jornal.

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