terça-feira, novembro 12, 2002



Momento Supercine de Cinema

O grande Carlos Gerbase, cineasta, crítico, punk e músico gaúcho, escreveu entre 1999 e 2000 uma sensacional coluna de cinema no extinto portal ZAZ, que depois virou Terra. Suas resenhas de filmes seguiam sempre uma determinada estrutura própria. Estrutura essa que vou copiar aqui, é claro que sem nenhuma autorização.

FALE COM ELA

Rapidinho...

Fale com Ela (Hable con Ella, de Pedro Almodóvar, 2002), é a estória de dois homens que, unidos por coincidências fantásticas que só mesmo Almodóvar pode tornar possíveis, passam a envolver-se em torno do relacionamento e da dedicação que cada um deles tem com suas mulheres. A genial mão do espanhol está sempre lá, na sensibilidade e beleza da estória e dos personagens, na força das cores, dos cenários, da música (brasileira, por sinal). Tudo que um fã do diretor reconheceria num primeiro olhar, mas que também agora é capaz de agradar e encantar mesmo àqueles que nunca foram com a cara do alegre espanhol. Dito isso, tenho que confessar uma coisa: não gostei de Fale com Ela.

Agora com mais calma...

Tudo bem, talvez isso seja só coisa de admirador chato. São poucas as pessoas hoje de quem posso dizer que sou realmente um fã. Fã no sentido de conhecer e gostar da obra, de esperar ansiosamente pelo próximo trabalho. Teria que pensar para escolher outros exemplos, mas posso dizer sem titubear: sou fã de Pedro Almodóvar. E talvez essa expectativa (maldita seja...) tenha me feito decepcionar diante de Fale com Ela. De novo: é um filme ótimo, acima da média, sucesso de crítica e que vale a pena ser visto. Mas saí do filme com a nítida sensação de que faltou algo.

Almodóvar é um dos poucos diretores contemporâneos que conseguiu aliar o cinema autoral com sucesso comercial. Seu estilo é único e inconfundível, ao mesmo tempo que consegue encontrar reconhecimento na indústria e no mercado. Um filme de Almodóvar é uma obra de Almodóvar: ele escreve, dirige, manda e desmanda, imprime a sua marca e ainda consegue ganhar dinheiro com isso. Poucos diretores tem hoje essa capacidade e esse poder.

O próprio diretor denomina seu estilo como "neorrealismo fantástico" ou "naturalismo do absurdo". Nos primeiros filmes, mesmo já fantástico e genial, Almodóvar possuía uma expressão exagerada, neurótica, visceral. Estórias como as de O Matador(1985) e Kika(1993) chegam a ser bem estranhas, ainda mais dentro da sua estética do exagero. Sem dúvida a obra-prima desta primeira fase é Mulher a Beira de Um Ataque de Nervos(1987), filme onde a mistura de todos seus ingredientes sai perfeita: o acaso, o absurdo, o humor, o desvendamento da alma feminina, tudo se equilibra de forma magnífica.

Já consagrado internacionalmente (leia-se, também nos EUA), seus três últimos filmes tem sido recebidos como obra-primas pela crítica. Desde Carne Trêmula(1999), passando por Tudo Sobre Minha Mãe(2001) e chegando agora à Fale com Ela, Almodóvar demonstrou amadurecimento, sofisticou suas mensagens, depurou seu estilo. Conseguiu lapidar seu exagero natural. Mas, nesse processo, sempre corre-se o risco de perder algo da magia e da energia anterior. Perder o seu mojo, como diria Austin Powers...

Mas ainda não falei nada sobre Fale com Ela. Muito se comentou que o tema do filme era a amizade entre dois homens, que Almodóvar, após tanto analisar as mulheres, colocava agora seu foco agora sobre a alma masculina. Não concordo. Acho que a estória apenas utiliza dois personagens masculinos para tratar de um só tema, muito mais amplo e geral. Pois temos de um lado a estória da dedicação e do amor incondicional que um homem tem para uma mulher, e, do outro lado, um outro homem que ainda busca descobrir dentro de si essa capacidade de amar.

O que o filme explora é essa busca pela capacidade de se entregar, de amar verdadeiramente. Um assunto sem dúvida belo, que causa tamanha estranheza no mundo atual que só poderia ser simbolizado por um personagem às raias da loucura. A amizade masculina não chega a ser analisada no filme, é apenas um pano de fundo para o aprendizado entre os personagens. Em Carne Trêmula, por exemplo, Almodóvar explora muito mais alguns comportamentos tipicamente masculinos. Para mim Fale com Ela ainda é um filme sobre a alma feminina, talvez o veredicto de Almodóvar quanto a isso. Após tantos filmes devassando o labirinto feminino, dá para sentir um certo ar conclusivo no genial diálogo onde o enfermeiro explica ao escritor como uma mulher pode ser misteriosa mas, ao mesmo tempo, pode ser bem simples de se agradar.

Apesar de todas suas qualidades, falta a Fale com Ela um pouco mais de ritmo, de energia, da força que se espera de um filme de Almodóvar. Ao pensar no filme assim, a posteriori, não faltam pontos positivos. Mas ele é sempre morno, nunca chegando a realmente envolver. Cenas lindíssimas, como as da tourada ao som de Elis Regina, valem o ingresso, mas não fazem a estória decolar.

Talvez o problema seja a expectativa imposta pelo nome do diretor. Mas é impossível fugir disso, afinal, esperei mais de um ano para ver esse filme. Ainda acredito que Carne Trêmula é o auge desta nova fase de Almodóvar. Muita gente prefere Tudo Sobre Minha Mãe, mas acho que o primeiro tem mais vida, mais sal, mais graça. Ainda assim, Tudo Sobre Minha Mãe tem qualidades superiores à fase antiga de Almodóvar. Já Fale com Ela, infelizmente, faz ter saudades de outros tempos.

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