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quinta-feira, maio 29, 2003
Momento Supercine de Cinema
A Última Noite
Edward Norton levava uma vida tranquila e confortável. Tinha uma bela namorada porto-riquenha de nome exótico, e com ela dividia um modesto mas aconchegante apartamento num bairro bem localizado de Nova York. Seu pai, como bom membro da comunidade irlandesa da cidade, é dono de um pub e faz o tipo beberrão boa-praça que costuma distribuir rodadas de cerveja Guiness de graça a cada vitória dos NY Yankees. Edward Norton, por sua vez, preferia uma vida mais tranquila. Costumava caminhar pelo parque durante as manhãs. Ninguém poderia dizer que aquele simpático sujeito que passeava com seu cãozinho na coleira ganhava a vida traficando cocaína.
Em A Última Noite, porém, a estória acima já é passado. Spike Lee, o mais aclamado e polêmico diretor negro americano, aquele que tem Nova York no sangue, conta em "25th hour" ("vigésima quinta hora") justamente o último dia de liberdade de Edward Norton, condenado a 7 anos de prisão pela sua pacata atividade de distribuição de entorpecentes.
O olhar de Spike Lee sobre estas vinte quatro (ou vinte cinco...) horas de derradeira liberdade é, ao mesmo tempo, duro e sensível. E me fez enxergar uma estória sob pelo menos duas perspectivas, diferentes mas complementares.
A Última Noite pode ser visto, por um lado, como uma forte e bela estória de amizade. Porque Edward Norton, ao se ver traído, julgado e condenado, ao perceber que jogou pela janela não só os próximos sete anos de sua vida, mas também o pouco que havia construído até ali, só encontra segurança e apoio na companhia de seu pai e de seus amigos de infância: Berry Perry e Phillip Seymor Hoffman. Estes dois são sujeitos tão diferentes dele próprio e também entre si, que é difícil acreditar que exista ali qualquer cumplicidade. Só mesmo uma amizade incondicional, daquelas que a gente nem se lembra mais do início, pode superar tamanha diferença de personalidades. E é com eles que Norton planeja passar sua última balada, também em companhia de sua namorada. Sobretudo, é somente nestes amigos em quem ele confia. Nesse ponto, a temática de A Última Noite ganha um foco bastante masculino - essa cumplicidade, essa camaradagem quase mafiosa, isso é coisa muito mais comum e compreensível entre homens que entre mulheres. Muitas mulheres podem ficar um pouco de rabo-preso, por exemplo, ao ver o sujeito confiar mais nos amigos do que em sua amada.
Existe, porém, uma outra forma de se olhar A Última Noite. Para isso, basta colocar o filme dentro do seu contexto, digamos, histórico e político. Este é um dos primeiros filmes a ambientar sua estória numa Nova York sem as Torres Gêmeas. E Spike Lee não te deixa esquecer disso nem por um momento. Através do seu tradicional retrato apaixonado pela cidade, te faz sentir de perto o impacto causado pelo 11/9. Não só o impacto aparente, mas também o impacto encoberto. Vendo o filme dentro deste contexto, é impossível não fazer um paralelo entre a estória do traficante Edward Norton e os acontecimentos que agrediram a alma dos americanos.
Num belo dia, como outro qualquer, bam!, os anos dourados de Norton desaparecem. De repente, a casa caiu, a festa acabou, o mundo ruiu. Algo tão improvável como dois aviões se chocarem com o WTC. E, num supetão, Norton está ali, perplexo e com um dia inteiro de reflexões pela frente. Numa já clássica cena defronte ao espelho, Norton começa destilando intolerância e mandando às favas todas as suas fontes de insatisfação na metrópole: malandros italianos, jogadores de basquete negros, taxistas paquistaneses, quitandeiros coreanos, mafiosos russos. Fodam-se todos aqueles vermes inúteis. E, depois do acesso de raiva, se dá conta que o único culpado por sua condição é ele mesmo. Reconhece que somente ele foi responsável pelos seus atos. Mas ainda continua perplexo, escondendo seus medos quanto ao futuro, tentando analisar as culpas do passado, tateando no escuro em busca de aliados e de esperança.
Spike Lee muda bastante seu estilo em A Última Noite. É um filme cadenciado, de cores pastéis e acinzentadas. Não chega a ser lento, mas está muito longe do ritmo frenético que marcou as origens do diretor. Na temática, no entanto, Spike Lee continua incisivo. Contando a estória de amizade e de angústia dos personagens, ele não erra nunca. Por outro lado, quando quer deixar claro sua mensagem política, Lee pesa um pouco na mão e acaba soando desnecessariamente explícito. Abusa do risco de parecer inocente, cabotino, panfletário. Nada que desabone o filme, até porque a mão aqui não chega a ser pesada como a de Michael Moore. E nem precisava, pois A Última Noite é capaz de tocar em feridas muito mais profundas e escondidas que o aclamado Tiros em Columbine.
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