segunda-feira, maio 19, 2003



Solitude*

Felipe arrumava seu gorro de lã preto, olhando-se no espelho do banheiro do cinema, quando tocou o telefone. Tavinho? Falaí, mano. Sei. Na casa da amiga? Da hora... Aí, prestenção, me liga daqui a pouco, eu vou atender e falar que eu não vou, mas eu vou, falô? Entendeu, vou falar que não vou mas eu vou, falô? Me espera aí, tá legal?

Guardou o telefone no bolso e se olhou no espelho de novo. Saiu do banheiro tentando disfarçar a excitação. Mariana já esperava no corredor e sorriu. Deram as mãos e ainda demoraram a achar o caminho até o estacionamento.

***

Chegou em casa apressada. A mãe estranhou quando a viu passar correndo pela sala. Não era nem meia-noite, chegou cedo minha filha. Que saco, tinha que ouvir quando chegava tarde e também quando chegava cedo. Realmente a mãe não gostava que ela virasse a noite por aí. Brigava. Mas qual a mãe que não briga, afinal, cada um tem o seu papel, o da mãe era reclamar, o dela era chegar tarde. E estavam combinadas. Às vezes ela ficava de saco cheio, admite, tinha até contado ao namorado sobre isso. Estranho que, depois disso, o namorado é que passou a se preocupar com o assunto. Melhor te levar pra casa, senão tua mãe briga, não é? Na maioria das vezes eles não ligavam para os horários, mas agora, de quando em quando, ele aparecia com essa preocupação. Legal ele se importar, mas ela não gostava de chegar em casa cedo, sentia que estava perdendo alguma coisa, ficava triste.

Hoje, porém, ela não tinha se importado. Quando ele falou em deixá-la em casa, ela não reclamou, quase deixou escapar um sorriso. Fazia uma semana que estava com a cabeça longe, que andava meio desligada. Chegar cedo esta noite viria mesmo a calhar. A simples idéia de poder aproveitar aquele tempo já tinha a deixado ansiosa. Atravessou correndo a sala, nem ligou para ironia da mãe. Entrou no quarto, bateu a porta, sentou-se e ligou o computador. Os cinco minutos de espera até o login pareceram intermináveis, mas, infelizmente, Icarus não estava on-line.

***

A campainha tocou pela segunda vez e o Seu Moreira não pôde esperar mais. Levantou-se, mas antes de atender à porta voltou ao micro e desligou sua conexão discada. Trocou duas palavras com o Chico, perguntou como estava o movimento da noite, disse que hoje não tinha gorjeta e entrou para a cozinha com sua pizza de calabresa. Nada mal aquela pizza, mas ainda era inigualável à pizza de calabresa da cantina do colégio. Comia um pedaço por dia, no intervalo, e aquela lembrança enchia sua boca de água. Havia trabalhado durante quinze anos naquela última escola. De toda sua vida lecionando História, aquele sem dúvida fora o lugar de onde tinha melhores lembranças. A Dona Cleusa da cantina, sempre uma simpatia. E aquela pizza de calabresa, meu deus, lhe dava até um aperto no peito.

Seu Moreira suspirou, jogou as moedinhas de troco sobre o balcão e deixou as lembranças de lado. Não era nada mal aquela pizza. Voltou ao quarto, colocou-a sobre a cômoda, ao lado da garrafa de Coca-Cola que já estava lá, e conectou-se novamente. Tomara que ninguém tenha dado falta dele.

***

Tatiana estava deitada sobre a cama há quase meia hora. A luz estava apagada, o rádio tocava baixinho. Seus pais viajaram e a casa era delas naquela noite. Roberta havia ficado na sala vendo televisão, mas estava agora batendo na porta do quarto. Tatiana, abre essa porta, menina, estou ficando preocupada. As pizzas já chegaram e os meninos devem aparecer daqui a pouco.

Tinham combinado uma festinha esta noite, mais gente ia aparecer. Tudo que ela menos queria agora, festinhas, mais gente. Já estava com Roberta desde tardezinha, tomaram umas cervejas e depois acenderam um baseado. Era o suficiente pra ela, sua boca estava amarga. Queria só ficar ali deitada, olhando para um teto que não conseguia enxergar. Virou o travesseiro para evitar o lado já úmido e pensou que se o Tavinho aparecesse hoje ela ia encher a cara dele de porrada.

* Solitude é o nome de uma música muito legal do Duke Ellington.

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