segunda-feira, janeiro 20, 2003



Momento Isso É Música Para Os Meus Ouvidos



CIDADE DE DEUS - Trilha Sonora





Bateram na porta. Bateram de novo, porra. Não é nada não, é só o Dadinho. Mas o nome dele não é mais Dadinho, o nome dele agora é Zé Pequeno. Sem mais explicações explode o acorde dissonante dos metais, um funk cru e suingado invade o ambiente, cai mais uma boca na Cidade de Deus.

E é só o começo. As primeiras quatro faixas instrumentais, compostas para o filme por Antonio Pinto e Ed Cortes, jogam na parede todas as cores e ritmos da saga marginal daqueles meninos de Deus. O baixo rasgado e a linha de metais não negam a influência da música negra americana, trazem à mente o melhor do funk blackpower e dos filmes da blaxploitation dos anos 70. Luta pelo poder, lei do mais forte, malandragem, conquista do morro, clima de festa, apogeu da marginália. Zé Pequeno reina, Benê cativa. A guitarra suingada e o grito da cuíca invadem o terreno e agora domina o samba-funk, samba-rock, samba-soul. A vida na favela também é da gente comum, da gente sofrida, também é a vida de otário. Otário que, pulando de bico em bico, vai levando e tentando escapar do sangue, da violência. Mas o coisa-ruim tá em todo canto, em cada beco, Buscapé abusa do jogo de cintura. Momentos sombrios, de flautas, baixo e cadência da percussão.

O ritmo agora dá um tempo, porque malandro não pára, malandro dá um tempo. Porque agora é hora de sonhar, sonhar com a redenção, sonhar com o sitiozinho, uma plantação de maconha e a aposentadoria tranquila. Um amor, uma fazenda e uma casinha de sapê - afinal, um cara precisa mais do que isso? A melodia de Hyldon inspira, e Benê acha que não.

Volta o suíngue instrumental, meio sensual, meio sombrio. Será que dá mesmo pra recomeçar? A única certeza é que aquele sonho havia começado muito antes. O dinheiro e o poder não bastam, Benê quer mais, quer ser aceito na Zona Sul, quer namorar uma cocota, quer ser playboy. Quer mudar, quer ser metamorfose ambulante, assim como pregava Raul.

Mas o buraco é mais embaixo e como diz Wilson Simonal, "nem vem que não tem". O balanço do carioca faz o pedido, "vamos voltar à malandragem", e quem ouve o chamado malemolente é Mané Galinha, ex-homem-de-bem. Explosão da violência contraposto ao funk cadenciado e bem-humorado.

Quem não nasceu ontem, meu velho, sabe que a raiz disso tudo é muito antiga. Vem lá detrás, de quando a periferia ainda era longe e a molecagem ainda era desculpa para bandidagem. Mas a inocência morreu logo e, assim como Benê, Cabeleira morreu atrás do sonho, empurrando seu amor num carro velho, correndo sob a luz do pôr-do-sol, ao som da voz de Cartola. Só resta chorar.

Mas também Cartola nos traz a Alvorada, faz o morro acordar de novo, reunir a roda de samba, trazer o cavaquinho e violão. Lembrar de um tempo de esperança, onde ninguém chora, nem há tristeza. Tempo de romantismo, se é que houve mesmo esse tempo. Lembrança turva de anos pobres mas dourados.

É hora então de Seu Jorge sair da pele de Mané Galinha e atualizar essa visão do morro. Alegria de pobre dura pouco, os créditos já começam a correr na tela, mas o samba rasgado dá nome aos bois: Jesus, José, João, Mané - filhos da cidade que Deus esqueceu de olhar. Ainda há tempo de Tim Maia entoar seu canto racional e chamar todos para mergulhar no funk lisérgico e trilhar o Caminho do Bem. Uma viagem difícil depois de tudo que se viu até aqui.

As cortinas já caíram mas, como num delírio dejá vu, o batuque recomeça, crescente, vibrante. A galinha escapa da panela, sai em disparada, foge entre cuicas e tamborins. O surdo marca o ritmo, dita o corte frenético das imagens, a galera corre ensandescida atrás da presa. O trecho é curto, mas num loop bem que tudo podia voltar ao começo. Porque nada é o que parece, e agora a faixa já é outra.

E tudo se encerra nesse techno pesado, remixagem da trilha original. Trecho em descompasso com a narrativa, música deslocada da época em que ocorre a trama. Incoerência? Talvez. Ou talvez uma ponte entre aquele passado e este presente, a idéia de que tudo que ocorreu até ali continua até nossos tempos de bailes "funk" e música eletrônica. Firme, forte e real.

Faixas

1. Meu Nome É Zé - Instrumental
2. Vida De Otário - Instrumental
3. Funk Da Virada - Instrumental
4. Estória Da Boca - Instrumental
5. Na Rua,Na Chuva,Na Fazenda (Casinha De Sapê) - Hyldon
6. A Transa - Instrumental
7. Metamorfose Ambulante - Raul Seixas
8. Nem Vem Que Não Tem - Wilson Simonal
9. Preciso Me Encontrar - Cartola
10. Alvorada - Cartola
11. Convite Para Vida - Seu Jorge
12. No Caminho De Bem - Tim Maia
13. Morte Zé Pequeno - Instrumental
14. Batucada remix By Dj Camilo Rocha & Dj Yah


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