segunda-feira, agosto 11, 2003



Anacronismo e Intolerância

Mario Vargas Llosa, este sim, é um verdadeiro liberal. E este é o título do seu excelente texto publicado ontem no Estado sobre a recente manifestação da Igreja Católica sobre o homossexualismo. Vão alguns trechos aí embaixo, mas vale a pena ler tudinho.


O que mais surpreende no documento sobre os casais homossexuais apresentado pelo Vaticano no dia 1.º de agosto - escrito pelo cardeal Joseph Ratzinger e aprovado pelo papa - não é a reafirmação da doutrina tradicional da Igreja Católica que condena o amor entre pessoas do mesmo sexo como "um comportamento desviado" que "ofusca valores fundamentais", e sim a veemência com que se exorta os parlamentares e servidores católicos a agir para impedir que sejam adotadas leis que autorizem a união homossexual ou, se elas forem aprovadas, para frear e dificultar sua aplicação. Neste caso é que parece não servir para nada aquela sábia distinção evangélica entre o que é de César e o que é de Deus: o documento toma de assalto a vida política e dá instruções inequívocas e terminantes aos católicos para que atuem em bloco, disciplinados e submissos como bons soldados da fé.

(...) Com argumentos assim, temperados com a presença sulfúrica do demônio, a Igreja mandou milhares de católicos e infiéis para a fogueira na Idade Média e contribuiu decisivamente para que, até nossos dias, a alta porcentagem de seres humanos de vocação homossexual vivesse na catacumba da vergonha e do opróbrio e fosse discriminada e ridicularizada, enquanto se impunha na sociedade e na cultura o machismo, com suas degenerantes conseqüências: a postergação e humilhação sistemáticas da mulher, a entronização da viril brutalidade como valor supremo e as piores distorções e repressões da vida sexual em nome de uma suposta "normalidade" representada pelo heterossexualismo. Parece incrível que, depois de Freud e de tudo o que a ciência foi revelando ao mundo em matéria de sexualidade no último século, a Igreja Católica - quase na mesma hora em que a Igreja Anglicana elegeu o primeiro bispo abertamente gay de sua história - aferre-se a uma doutrina homofóbica tão anacrônica quanto a exposta nas 12 páginas redigidas pelo cardeal Joseph Ratzinger.

(...) Se esse é o propósito, posso dizer com segurança que ele está fadado ao fracasso. Porque os escândalos sexuais recentes no seio das congregações, seminários, colégios e paróquias católicos não resultam de um enfraquecimento da autoridade eclesiástica nem da falta de disciplina interna, e sim de uma natureza humana que nem agora nem antes pôde ser artificialmente refreada sem que se causasse estragos e lacerasse a psicologia e a conduta das pessoas. A diferença entre hoje e ontem, em matéria sexual, dentro e fora da Igreja Católica, não é de comportamento. Este não pode ter variado muito, porque, embora muitos costumes e crenças tenham mudado, os impulsos, os instintos, os desejos e as fantasias que animam a vida sexual continuam sendo os mesmos. É de publicidade. Antes, os escândalos podiam ser ocultados e os pedófilos e assediadores sexuais, safar-se, como, aliás, continua ocorrendo nas sociedades fechadas e submetidas à ditadura religiosa.

(...) Os milhões de homossexuais católicos do mundo não renunciarão à sua sexualidade por causa das fulminações vaticanas. (...) Não é o sexo, são a Igreja e a fé católicas as vítimas privilegiadas deste novo manifesto cavernícola.


Nenhum comentário: