quinta-feira, fevereiro 27, 2003



Demasiadamente Humana
ou Sobre a guerra, e já chega desse assunto...

Estranho, isso. Digo, ter que defender uma posição de não-agressão. O cidadão está lá, dando um duro danado, honrando a camisa, tocando a bola para frente. Ama, sofre e faz sofrer também. Mas, na medida do possível, vai vivendo e deixando viver. Tem sonhos, luta pelo que acredita. À sua maneira.

Então um dia, Tanatos desperta inesperado. A atração pela morte, que Freud descobriu humana como a vida, chega ao ouvido do cidadão e lhe sopra: Rapaz, acorda! Tua vida não vale um livro! Aventura, meu filho! O cidadão ouve calado e olha ao redor. Alguns amigos, que também ouviram o chamado, escolhem seu caminho. Uns partem para a luta revolucionária armada, outros alistam-se no exército. Fulano, que não tem grana, entra para o tráfico e barbariza. Outros ainda começam a saltar de asa-delta.

Mas o cidadão não dá bola pra Tanatos. Prefere ficar na dele. Honrar a camisa e lutar pelo que acredita, à sua maneira, ele já disse. Sempre preferiu Eros, a vida já lhe traz prazer e já lhe faz chorar bastante. Mas não pode, lhe dizem, o que é isso?, de pacatos o mundo já está cheio! Mexa esse traseiro gordo, meu filho, ou você vai ficar para trás! Ao vencedor as batatas, e os losers que fiquem escrevendo na internet! Pelo menos justifique-se, cidadão.

É impossível negar que a guerra faz parte do mundo. Que a história é uma sucessão de vencedores e vencidos. A violência também é parte do homem, que, antes de tudo, é bicho e tem que lutar por sua sobrevivência. Entender a guerra como parte do mundo, no entanto, não pressupõe dizer que ela é bem-vinda. Nem que é positiva ou benéfica. Assim como a violência pura e simples, a guerra simplesmente existe. E é provável que sempre exista, até mesmo como um mal necessário (como um ato de legítima defesa), enquanto ainda houver o injustificável movimento de agressão e ameaça.

A guerra é humana e é mal necessário, mas, como tal, não pode ser desejada ou justificada por si só. Simplesmente por negar um valor que é muito mais humano e necessário que ela: a Vida. E se defender a Vida tornou-se piegas, desculpem-me, mas pobres de nós.

Porque a defesa da Vida não é coisa dos hippies dos anos 70 ou dos babacas politicamente corretos dos anos 90. A defesa da Vida é coisa antiga. É até fácil perceber que nesse ponto, instintos e valores humanos caminham para o mesmo lado: a luta pela sobrevivência e a defesa da vida estão no mesmíssimo barco. Ou todo o desenvolvimento da civilização não tem sido feito com o intuito de frear os instintos destrutivos do homem (instintos que, no coletivo, transformam-se em auto-destrutivos)? O tal "pacto social" não teve como objetivo impedir o uso da violência entre os homens? Todo o processo de consolidação dos direitos civis e humanos, das estruturas sociais, da democracia, não teve como fim básico a garantia que o cidadão pudesse viver sua vida pacificamente, sem ser importunado por aventureiros e saqueadores?

É claro que o "pacto social" ainda não foi estabilizado internacionalmente. Se, dentro da sociedade, o cidadão já renunciou ao uso da violência, entre os Estados ainda não há renúncia plena à guerra. A ONU não deixa de ser uma tentativa nesse sentido, mas tudo ainda é muito recente e teórico. Sabemos que na geopolítica internacional ainda continua reinando a pré-histórica lei do mais forte. Mas não se pode negar que muitos esforços têm sido feitos. E que, tanto na construção de mecanismos contra a violência como contra a guerra, muita inteligência, esforço e genialidade têm sido empregados. Energias que não seriam gastas na luta contra algo que fosse positivo, benéfico ou desejável.

Muitos, entretanto, vêem com com maus olhos esses mecanismos. Anarquistas à esquerda, ou radicais-liberais à direita, vão dizer que tudo isso foi criado como um instrumento de dominação disfarçado, que o Estado é opressor e que tudo não passa de "limitações ao indivíduo". Irônico é que é neste tipo de pensamento, cético a qualquer mecanismo que estimule a cooperação internacional, onde reside boa parte da defesa pelas virtudes da guerra.

Irônico porque não existe um evento onde o Estado seja mais opressor aos direitos do indivíduo que na guerra. Quer seja pela propaganda, quer seja pela coerção do alistamento obrigatório, nada pode ser mais sujo e opressor que o Estado, na defesa dos seus ideais burocráticos e benêsses econômicas, recrutar e usar seus cidadãos como bucha de canhão. Nada é mais violador ao direito básico do homem que é a Vida.

Tanatos continua atazanando, mas o cidadão não dá bola. Olha para cima, pensa na vida e segue em frente. O mundo já se educou demais para resolver seus problemas na porrada. Foi o que ele sempre quis para si, e não pode perder a esperança que isso seja verdade. Até porque, o cidadão tem coração e, por mais que seja piegas, foda-se, ele importa-se sim com os velhos e com as crianças. E concorda com aquela estória de que é inaceitável inverter o curso natural das coisas e fazer com que os pais enterrem os filhos, e não o contrário.

Ademais, o cidadão acredita que não é só a guerra que estimula o espírito humano. Ele prefere sofrer como o jovem Werther a acompanhar as agruras de Homero. E ainda prefere a metafísica de Pessoa à testosterona de Hemingway.

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