quinta-feira, fevereiro 13, 2003





Momento Supercine de Cinema

Gangues de Nova York

Seja ela trágica, épica ou vulgar, a verdade é que qualquer estória pode ser contada em três linhas. Está aí o hilário site bookinaminute para nos jogar isso na cara, assim como os "minicontos" se tornaram uma modalidade literária cada vez mais em voga. No fundo, isso não passa de uma necessidade para qualquer jornalista que tenha de produzir as notas policiais do dia.

O gostoso do biscoito, entretanto, está no recheio. Assim como uma piada pode ou não ter graça dependendo de quem a conta, o que faz realmente a emoção e a graça de uma estória não é a cronologia dos seus fatos. São os detalhes inseridos, as nuances criadas, o contexto da ação. São nestes meandros que se cria (ou não) o prazer do ouvinte, do espectador ou do leitor.

Filho presencia o assassinato de pai em uma luta com um grupo rival. Após anos no exílio, volta para vingar-se. Aproxima-se do inimigo, mas acaba envolvendo-se emocionalmente com ele. Vive então o dilema de honrar ou não sua vingança. Shakespeariano, não é? Depende. Podia muito bem ser a sinopse de um filme do Van Damme ou do Charles Bronson. Mas a minha sorte é que aquele era um filme de Martin Scorsese.

Gangues de Nova York (2002) não deixa de ser, entre tantas outras, mais uma saga sobre grupos mafiosos em disputa pelas ruas de Manhattan. Com o detalhe signitivativo de ser narrada por Martin Scorsese que, ao lado de Francis Ford Coppola, foi nos últimos trinta anos o melhor contador de estórias da Máfia dentro do cinema americano. Scorsese consegue fazer juz à sinopse shakesperiana e tirar dela toda a complexidade e tensão que a estória pode oferecer. É um filme forte e violento, mas, ao mesmo tempo, reflexivo e estranhamente belo.

O termo "gangues" do título não se refere aos grupos juvenis de hoje em dia, mas sim à verdadeiras facções mafiosas que dominavam os bairros pobres de Nova York no meio do século XIX. Cada qual com seus ideais político-religiosos e seus códigos de honra, essas "gangues" disputavam o poder dentro de uma sociedade ainda sem lei (ou, pelo menos, sem alguém que garantisse a lei...).

Daniel Day Lewis é o líder de um desses grupos, os auto-intitulados "Americanos Nativistas", ou seja, formado por indivíduos nascidos na América e de religião protestante. O filme inicia-se justamente na batalha campal onde os Nativistas enfrentam os "Coelhos Mortos", grupo de imigrantes irlandeses católicos, liderados por Liaam Neeson. A violência que se segue é impressionante, e faz lembrar a cena do desembarque das tropas na Normandia do "Soldado Ryan" de Spielberg e. A violência aqui, acompanhada por uma música instrumental contemporânea composta por Peter Gabriel, é estilizada sim, mas nunca deixa de ser chocante e cruel. Dá o tom para o restante do filme.

Lewis mata Neeson, vence a disputa entre os grupos e passa a dominar politicamente Manhattan nos anos que se seguem. O pequeno filho de Neeson vê tudo e foge. Volta mais tarde, já na pele de Leonardo DiCaprio, dando sequência à sinopse já contada acima. Daniel Day Lewis constrói um fantástico personagem, mantendo-o às raias da caricatura, sem porém errar no tom. Um "vilão" que possui tanta honra, dignidade e humanidade quantos os "mocinhos" da estória. Inesquecível. Um dos pontos altos é sem dúvida a interação dele com DiCaprio, e o astro juvenil também não desaponta. DiCaprio parece ser sempre o mesmo em todos seus filmes, mas sua interpretação é sempre convincente e segura.

O grande trunfo porém, o que o faz o filme realmente único, é a ambientação que Scorsese dá ao contexto histórico da trama. Ele retrata uma Nova York que, apesar de datada de 1850, tem um ar completamente apocalíptico. Cheia de violência, de disputas tribais, de sujeira e de orgias desenfreadas. Uma cidade em caos social e com um visual que estranhamente nos remete ao mundo pós-hecatombe de Mad Max. Imagens que em nada lembram os livros de História que estudamos no colégio.

Numa das melhores cenas do filme, um paternal Daniel Day Lewis explica para DiCaprio que o poder, dentro daquele caos, só pode ser conquistado através do medo das pessoas. E então, ironicamente se lamenta: "nossa civilização está em plena decadência". Lembrei imediatamente das palavras que costumo sempre ouvir dos meus avós, "estamos no fim do mundo...", e aquela contradição ficou marcada em mim: sob determinado ângulo, em determinados contextos, a civilização sempre esteve em decadência. Toda a vileza, egoísmo e orgulho humanos são coisas que sempre existiram e hão de existir.

Scorsese encerra seu retrato do inferno nova-iorquino numa sequência que oferece alguma redenção. É sem dúvida um alívio, mas dependendo do seu humor, a cena pode até esbarrar no sentimentalismo. Eu gostei. E o sentimento que fica é esse: a valorosa luta pelos ideiais e pela honra às vezes não passa de uma mesquinha e inócua afirmação de orgulho próprio. Uma luta que facilmente descamba para a barbárie e violência sem sentido. Na defesa de causas que, invariavelmente, não resistem à marcha impiedosa do tempo.

Qualquer semelhança com o hoje ou com o sempre não é mera coincidência.

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